Voltar a viver e se readaptar ao que parecia tão simples, como levantar da cama e tomar banho, mas que ao se perder os movimentos do corpo se torna um desafio diário. Mudanças que provocam medo, insegurança e angústia por não saber se será capaz de se virar sozinho novamente e de praticar atividades que fazia antes do acidente, da doença, antes da vida mudar para sempre.
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Esses sentimentos fazem parte do dia a dia dos integrantes do Programa de Habilidades em Cadeira de Rodas da Universidade de Caxias do Sul (UCS). São sentimentos que dominam não apenas os cadeirantes, mas também as famílias e os profissionais que atuam no projeto. Para mostrar a eles que é possível se integrar e se reinserir na sociedade e que não estão sozinhos, o programa com o apoio do Instituto Sérgio Lovato, que desenvolve ações em prol da cidadania e do desenvolvimento social, promoveu uma ação inédita em Caxias do Sul.
Um grupo de 12 cadeirantes — 10 de Caxias e outros dois de Canela e Paraí — foi até o Iguatemi Caxias por volta das 10h30min desta quinta-feira (23). A ideia surgiu depois que a mãe de um dos integrantes foi com o filho adolescente até um shopping e o olhar das pessoas o fez se sentir triste. O jovem chorou e a mãe levou o filho para casa.
O grupo passeou pelo shopping, entrou em lojas, provou roupas — para ver se o provador realmente está adaptado para que um cadeirante entre no espaço — e almoçou no local. A iniciativa quer desafiar os cadeirantes a conviver em espaços públicos e desmistificar alguns receios e bloqueios provocados, principalmente, pela forma como perderam os movimentos, para que eles possam ressignificar alguns sentimentos.
A maioria do grupo são jovens de 16 a 40 anos, que tiveram diagnóstico de lesão medular, depois de acidentes de carro, motocicleta, queda de altura ou atropelamento. Também há casos de pacientes com mielomeningocele paralisia cerebral, AVE, entre outros.
"Uma bala perdida mudou a minha vida", diz cadeirante
O grupo estava animado e conversava alegremente enquanto passeava pelo shopping. Chamava a atenção em meio aos cadeirantes a presença de uma menina. Natália Luíza de Souza Rodrigues, 9 anos, acompanhava o padrasto Diego Barcelo Vieira, 31.
— Eu adoro sair com ele e ajudar — contou ela.
Diego afirma que os filhos dele, que estão passando as férias com a mãe, também ajudam nos passeios. Ele perdeu os movimentos do pescoço para baixo em 18 de setembro de 2016, depois de ser atingido por uma bala perdida em um tiroteio em frente a uma lancheria na Avenida São Leopoldo. Passou seis dias em coma, teve o baço e o rim esquerdo retirados e uma intensa rotina para se recuperar e se readaptar.
Sorridente, ele conta que os amigos do grupo o chamam carinhosamente de "cadeirante nutella".
— Uma bala perdida mudou a minha vida. Sou alto e no hospital cheguei a pesar 46 quilos. Minha recuperação contou com muita ajuda e apoio da minha família, com cuidados e carinho. O médico disse que eu não me recuperaria, mas hoje eu consigo ficar de pé alguns minutos e dar alguns passos no andador. Eu só não sinto os movimentos da canela para baixo — comemora.
Para ele, o programa e o acesso ao esporte estimula os cadeirantes:
— Inspira a sair da cama, de casa, conviver em sociedade. É importante esse convívio.
"Hoje a impressão de não ter mais uma vida mudou", conta que cadeirante que perdeu movimentos ao cair do telhado.
Ao descer do ônibus da Visate que levou parte do grupo até o shopping, José Antônio Andreis, 58 anos, demostrava ansiedade:
— Essa experiência será boa porque eu não sabia se voltaria a frequentar esses lugares. Desde o meu acidente não venho aqui.
Ele não lembra claramente do acidente que o levou para a cadeira de rodas. Mesmo se lembrasse dos detalhes, está determinado a não se apegar a momentos ruins e sim à recuperação. Andreis conta que era um dia normal e ele subiu no telhado da empresa, da qual era dono, para arrumar as telhas. A tarefa corriqueira se transformou em um acidente porque um vendaval o derrubou de uma altura de oito metros.
— No começo é muito difícil de encarar e de aceitar. Hoje a impressão de não ter mais uma vida mudou. Estou me adaptando à minha nova realidade e me inserindo na sociedade novamente. Eu vivo o agora e conto com a ajuda dos meus familiares, amigos e de tantas pessoas que me cercam. Me sinto outro pessoa e estou em busca do autoconhecimento porque esse acidente mudou a minha vida.
"Me senti bem por sair sozinho", ressalta Eric
Eric Aguzzoli dos Santos, 16 anos, nasceu com uma doença congênita, a mielomeningocele. Tímido, ele era um dos mais quietos do grupo. Ao entrar num loja foi até o provador e, falando baixo, elogiou o tamanho dos provadores, onde entrou para experimentar uma camiseta.
— Eu não saio muito de casa. Quando saio estou sempre acompanhado. Me senti bem em estar aqui sozinho — afirma o adolescente.
"Temos que fazer essa atividades para nos sentirmos vivos", destaca Cleiton
Um acidente de carro em maio de 2016 mudou a vida de Cleiton Carminatti, 29. O jovem afirma que o passeio é uma atividade essencial para que o grupo volte a conviver em sociedade.
— Tem muitos cadeirantes que não saem de casa. Em caso de acidentes não aceitam a nova realidade e param de viver. Temos que fazer essas atividades para nos sentirmos vivos. Temos que inspirar uns aos outros e nos animar para mostrar que vale a pena estar vivo — diz ele.
AÇÃO INÉDITA
A ação realizada pela primeira vez contou com a presença das coordenadoras do Programa de Habilidades em Cadeira de Rodas, a fisioterapeuta Jussara Ferreira e a psicóloga Priscila Ferrari, bem como equipe do Instituto Sérgio Lovato. Jussara explica que o programa conta com 18 encontros, em que os participantes são capacitados com técnicas de locomoção em cadeira de rodas - dentre elas, treinamentos em diferentes terrenos e texturas, aclives e declives, transferências e atividades de vida diárias, além das práticas de esportes adaptados.
— Se fala tanto em acessibilidade e inclusão social, mas nem sempre essas necessidade são atendidas. Eles aprendem a enfrentar o mundo novamente. Já passaram por tantos desafios e precisam reaprender tudo, inclusive essa vivência em sociedade. Eles têm que voltar a viver, mas a sociedade também tem que estar pronta para essa inclusão — ressalta.
Para Jussara, um dos maiores aliados dos cadeirantes é o esporte.
— A maioria deles joga basquete e todos eles praticam esportes, que é essencial para a reabilitação. No programa, eles têm atendimento com fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros. Também conversamos sobre as questões de relacionamentos e de relações sexuais. Uma profissional conversa com eles sobre encontrar novas maneiras de sentir prazer. Eles precisam se reinserir novamente.
Para o diretor executivo do Instituto Sérgio Lovato, Patrick Mezzomo, a ação incentiva a real inclusão:
— Acredito que o impacto provocado para as pessoas motive a repensar e aderir a luta por uma inclusão social de fato nos mais diferentes espaços da sociedade. Para eles, é uma chance de independência e empoderamento porque saem de casa sem familiares, é uma prova que podem sair sozinhos, e fazer compras, almoçar e se divertir.
GRUPO CHAMAVA A ATENÇÃO
Frequentadores do shopping e funcionários observavam com curiosidade o grupo. Para Fabiele Fischer, 25 anos, a iniciativa mostra a realidade que eles vivem:
— Chama a atenção todos juntos, gera curiosidade e também nos faz pensar. Aqui na loja sempre acolhemos bem a todos. Acho que essa ação é válida para buscar essa acessibilidade e que se sintam bem em todos os espaços.