Levantar a cabeça, sacodir a poeira e seguir em frente. Esse é o sentimento compartilhado por centenas de moradores de Lagoa Vermelha. O vendaval que atingiu a cidade na madrugada da última quinta-feira (31), com rajadas de até 130 km/h, destelhou cerca de 100 casas e causou danos graves em pelo menos 1,5 mil moradias.
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Num intervalo de duas semanas, é a segunda vez que o município dos Campos de Cima da Serra foi castigado pelo clima. Em 17 de outubro, um temporal de granizo danificou 4.587 casas, desalojando famílias e causando prejuízos que superam os R$ 10 milhões, conforme a prefeitura.
Na sexta-feira (1º), a reportagem do Pioneiro se deslocou até Lagoa Vermelha, afim de acompanhar o trabalho de reconstrução e conhecer as histórias de quem foi atingido.
Ao circular pela cidade, dois cenários bem diferentes. Na região central, eram poucos os sinais do vendaval, somente alguns galhos de árvores amontoados em canteiros da Avenida Afonso Pena, que corta o município de 27 mil habitantes e abriga Centro Administrativo, igreja, agências bancárias, farmácias e restaurantes. A poucos minutos de distância, no entanto, foi possível encontrar casas cobertas de lonas, fios da rede elétrica caídos nas ruas de paralelepípedos ou chão batido, além de entulho de construção, como tábuas e telhas quebradas.
Ajuda insuficiente
Não bastasse o susto de ter encontrado a esposa caída na área de serviço após ter sido atingida na cabeça pelo forro de PVC e o prejuízo de ter a casa destelhada pela segunda vez em duas semanas, o tratorista aposentado Luiz de Mello, 62 anos, ainda sofria com a falta de energia elétrica. Na noite de sexta, quando a reportagem visitou a moradia do casal, no bairro Operário, já eram quase 48 horas sem luz, situação que afetou centenas de moradores.
— Perdi tudo na geladeira, carne, legume... As coisas estão estragando. Só sobrou ovo e leite — mostrou o aposentado, segurando uma das velas que iluminava a cozinha.
Com o passar do tempo, a bateria do celular e das lanternas acabou, dificultando ainda mais os reparos no telhado e o contato com a RGE, responsável pelo fornecimento de energia no município.
— Eles só dizem "já vem, já vem", mas ninguém aparece. Pior é que eu recém tinha me aposentado e precisei usar todo o dinheiro do acerto pra comprar folha de zinco. O que a prefeitura me deu não cobriu metade da casa. Agora não sei mais o que fazer — completou Mello.
O ferimento da esposa não foi grave. Na noite de sexta, a também aposentada Eva Oliveira de Mello, 64, não estava em casa: havia ido à igreja. Segundo o marido, um "conforto nas horas difíceis".
"Vi minha casa indo embora"
Nem mesmo a idade impediu que Iraí de Paula Neri acordasse cedo para ajudar o sobrinho na reconstrução do telhado de casa. Por volta das 8h de sábado, a aposentada de 82 anos já estava de pé, carregando uma tábua de quase três metros pela rua de chão batido no bairro Boa Vista, um dos mais atingidos.
— Destelhou tudo. Precisei ficar de guarda-chuva dentro de casa. Nunca tinha passado por isso. A tristeza é muito grande — desabafou, de braços cruzados e olhar fixo nas janelas da cozinha.
A moradora perdeu o fogão à lenha e alguns móveis. A cama só foi salva porque a aposentada correu para cobrir com lona. Detalhe: o material havia sobrado do temporal de granizo, dias antes. Segundo Dona Iraí, o socorro da Defesa Civil também foi insuficiente. As 30 folhas de zinco recebidas após o vendaval cobriram apenas um dos cômodos. As outras 50 foram compradas com as economias que ela guardava na poupança.
— Dá vontade de ir embora daqui, mas pra onde? Temporal tem em todo lugar, né?
Na mesma rua, cerca de 50 metros adiante, o cenário era pior. Além do telhado, o vento derrubou as paredes de uma casa na esquina. As tábuas ainda estavam no chão. Já as folhas de zinco, retorcidas, foram parar no outro lado da rua. O dono do imóvel é o montador de móveis Jhonata dos Santos Machado, 25. Ele, a esposa e as duas filhas não estavam em casa na hora do vendaval.
— Minha mulher teve bebê há poucos dias e ainda não consegue subir as escadas, por isso fomos passar a noite na casa da avó dela, que é aqui embaixo, na mesma rua. Assisti minha casa indo embora. Agora é batalhar de novo — contou o rapaz.
Jhonata também foi duplamente atingido: primeiro o granizo, depois o vento.
— Eu ainda tô pagando esse telhado aqui no chão. R$ 4 mil, fiz parceladinho — desabafou.
Trabalho de muitas mãos
A reconstrução de Lagoa Vermelha tem muitas mãos, rostos e nomes. Pessoas que, nos últimos dias, têm dedicado parte do seu tempo para ajudar familiares e vizinhos.
É o caso do pedreiro Márcio Urbano, 38 anos, que desde o temporal de granizo do último dia 17, trabalha carregando tábuas, removendo entulhos dos terrenos e trocando telhas.
— Dinheiro a gente não tem, mas sempre pode ajudar de algum jeito — disse, de furadeira em mãos.
Na manhã de sábado, Urbano trabalhava para refazer o telhado da vizinha Luci Fátima Santos, 63. A aposentada, que mora sozinha na casa que pertenceu à mãe, conta que precisou se esconder atrás do guarda-roupa durante o temporal.
O forte vento destelhou os quatro cômodos: sala, cozinha, quarto e banheiro. Dona Luci perdeu o fogão, a televisão e quase todos os móveis, incluindo a própria cama. A solução foi mudar para a casa do sobrinho, que fica a poucos metros de distância, também no bairro Boa Vista.
— Foram 25 anos trabalhando no pomar, embaixo de sol, chuva, neve, para perder tudo no temporal. Só de pensar, não consigo nem dormir direito — relatou a aposentada, sem conter as lágrimas, com a sobrinha-neta no colo.
Dona Luci já tinha sofrido com o granizo. As telhas novas, compradas com as economias guardadas no banco, haviam sido instaladas há apenas cinco dias.
— Não tenho o que fazer, não tenho mais dinheiro. Ainda bem que tenho minha família e meus vizinhos — concluiu a aposentada, enquanto observava o vizinho pregar a sustentação do novo telhado.
Prejuízos ainda são calculados
Passados dois dias da tormenta, a Defesa Civil ainda trabalha para auxiliar os atingidos e calcular os prejuízos. Até o momento, o órgão distribuiu cerca de 25 mil telhas e mais de 35 mil m2 de lona. A maior parte do material, oriunda do estoque da prefeitura, com exceção de 2,5 mil telhas doadas pelo governo gaúcho e alguns rolos de lona vindos de Passo Fundo.
— O cobertor é curto, mas a gente faz o possível. Também é importante que as famílias atingidas se cadastrem junto à prefeitura para facilitar o atendimento — reforça Admilson Ferreira da Silva, coordenador da Defesa Civil de Lagoa Vermelha.
Com o mapeamento das áreas atingidas e o levantamento dos prejuízos, a intenção da prefeitura é editar um novo decreto de situação de emergência até terça-feira (5), com validade de 180 dias.
Se homologado pelo governo do Estado, o mecanismo prevê repasse de recursos e materiais de construção. Caso seja reconhecido também pela União, o decreto resultará na liberação do FGTS para os atingidos.
Para ajudar
Doações podem ser entregues diretamente na Casa do Produtor Rural, ao lado do Ginásio Adolfo Stella, no centro de Lagoa Vermelha. Os itens prioritários são colchões, cobertores e alimentos não-perecíveis.