Chanceladas pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, as comunidades terapêuticas foram alçadas ao posto de principal esperança na luta contra a epidemia do crack no país. Terra chega a negativar o trabalho realizado por frentes que valorizam a teoria da redução de danos, cujo objetivo é fazer com que o usuário de drogas saiba lidar com o próprio consumo, avalie sua condição física e mental e cuide da saúde. É uma nova tentativa governamental para amenizar o problema após a derrocada do programa Crack é Possível Vencer, da gestão de Dilma Rousseff.
Mas priorizar as comunidades tradicionais, que pregam a abstinência total, e fazer valer a internação involuntária de dependentes químicos amenizaria algo que só piorou? São medidas suficientes para alavancar uma nova mobilização contra o crack, a exemplo do que foi visto no início da década? Não há respostas definitivas e sequer há consenso de que a droga feita de restos de cocaína e produtos químicos é, de fato, a substância que merece mais preocupação.
Para tentar entender por que esse cenário é tão complexo, a reportagem ouviu representantes das comunidades terapêuticas, pessoas que lidam com a prevenção de outras formas e a Rede de Atenção Psicossocial, ligada à Secretaria Municipal da Saúde em Caxias. Numa sondagem simples, é possível identificar pelo menos seis tipos de abordagens na cidade, diversidade defendida por especialistas. Há tratamentos com viés religioso católico e evangélico, a independência total dos Narcóticos Anônimos, o atendimento clínico tradicional e a redução de danos, entre outros. Ninguém arrisca apontar qual é a receita ideal.
Para o ministro, que concedeu entrevista à Rádio Gaúcha Serra na terça-feira, houve omissão generalizada no Brasil nos últimos 30 anos, principalmente após a explosão da epidemia do crack em 2006. Ele defende a corrente da abstinência total, cartilha seguida pelas comunidades terapêuticas.
— O governo ficou meio que olhando com cara de paisagem, se lançou alguns programas tímidos, não se criou uma política nacional. Todo o tratamento do dependente químico está equivocado, é só redução de danos, as pessoas não eram levadas a ficar em abstinência, a ficar sóbrias, era só não fumar crack na latinha e sim no cachimbo de vidro. Agora no governo do presidente Bolsonaro se criou uma política sobre drogas e uma nova lei sobre drogas. Não se pode ficar com o discurso de que não ganhamos a guerra e tem que liberar. Vai ser uma tragédia maior — criticou o ministro.
A Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas, presidida pela deputada estadual Fran Somensi (Republicanos), também encampou a ideia. Serão realizadas três reuniões até o final do ano para colher demandas e informações que embasaram um plano em 2020. O primeiro encontro ocorre na próxima quarta-feira no salão nobre da prefeitura de Farroupilha. De acordo com a deputada, o objetivo da reunião é aproximar os municípios, o Estado e a União, criando grupos de trabalho que irão debater e fomentar políticas públicas que possam aprimorar os serviços e dar mais suporte à essas comunidades, muitas vezes mantidas por entidades sem fins lucrativos e que dependem de doações. Com essas notícias, a expectativa é grande nas comunidades terapêuticas
Com essas notícias, a expectativa é grande nas comunidades terapêuticas, que podem sair de anos de dificuldades financeiras.
Colaborou Diego Mandarino (Rádio Gaúcha Serra)
SAIBA MAIS
Comunidade terapêutica
É um serviço sem fins lucrativos que prega a abstinência total. A adesão do dependente químico é voluntária e o tratamento geralmente é pago por meio de convênio, mas o acesso também ocorre por vagas sociais. É mantida por uma entidade religiosa ou associados que seguem um viés religioso. As comunidades não fazem parte do SUS, mas o governo as reconhece como equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes. Em Caxias do Sul, há várias comunidades, mas apenas quatro delas têm convênio com o Estado para o encaminhamento dos dependentes.
Redução de danos
É uma série de ações baseadas em estudos científicos para reduzir os danos físicos, sociais e até mesmo econômicos ligados ao abuso de drogas e álcool. Trata-se de um conjunto de estratégias para acolher dependentes químicos, em que é considerado o indivíduo e não exclusivamente a questão da dependência química. Prevê que cada pessoa tem liberdade de escolha e de uso do próprio corpo. Tem adeptos no SUS, mas não é reconhecido pela gestão do presidente Jair Bolsonaro.
OPINIÕES
REDUÇÃO DE DANOS X ABSTINÊNCIA
— A redução de danos não é só as drogas, nasce na questão do HIV/Aids, Hoje, o Consultório de Rua atende o invisível, tem uma população que não está no CAPS, nem na rua, está na verdade em alguns locais, aqueles becos que ninguém chega. Tanto que tivemos várias situações de mulheres dependentes químicas que nós não conhecíamos na rede. Elas nunca tiveram acesso a uma unidade básica. Não é trocar por uma droga mais leve.
Elizabete Bertele, diretora da Rede de Atenção Psicossocial da Secretaria Municipal da Saúde
— Acredito em tratamentos diferentes para públicos diferentes, não podemos ter uma linha só até porque não existe uma receita.
Diego Stuani, diretor técnico da Saúde Mental Adulto da Secretaria Municipal da Saúde
— A maioria das comunidades terapêuticas que visitei são as que trabalham numa visão mais aproximada do perfeito. Na comunidade, há grupo de apoio para familiares, é fundamental importância que a família caminhe junto com o dependente químico.
Antônio Medeiros, presidente do Conselho de Políticas Públicas sobre Drogas (Compod)
— Temos uma campanha por trás pela liberação da maconha e até de outras drogas. Tem quem vá se beneficiar da redução de danos, mas não todos. Esses dias li que a mobilização deveria vir de baixo para cima para dar resultado. As pessoas teriam que abraçar, os próprios dependentes, as famílias e lutar pelas vidas. Começar pelas pequenas lideranças.
Neura Maria de Boni Santos, psicóloga voluntária da Pastoral de Apoio ao Toxicômano Nova Aurora (Patna)
— A primeira coisa importante de diferenciar nesse trabalho é que a segurança pública tem um trabalho e a gente tem outro. A segurança pública tem como prerrogativa executar a lei. Não é crime usar, mas segurar droga é. Se a segurança pública vê alguém com baseado na mão tem que fazer alguma coisa, de acordo com que o que é a atribuição dela. A saúde vai cuidar e tratar desse sujeito, é uma outra coisa, outro campo. A gente fez um círculo da Justiça Restaurativa, que teve o pessoal do judiciário que falou que não era atribuição da saúde dizer se aquilo era crime ou não, isso era função do juiz. Que eu não tinha que ficar preocupado se o ato de usar drogas era um crime ou não. Então, com isso, a saúde tem uma outra atribuição, de levar cuidado, de pensar uma estratégia para essa pessoa. Às vezes a pessoa que faz o uso de droga tem outro problema de saúde muito mais sério que o uso de drogas. Por exemplo: a tuberculose. É muito mais importante tratar a tuberculose do que o alcoolismo num primeiro momento.
Daniel Araújo dos Santos, coordenador do Consultório de Rua
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DESMOBILIZAÇÃO
— A sociedade civil está desorganizada. O que mobiliza as pessoas? Pouca coisa. A falta de organização e de mobilização está em todas as áreas. Quando se trata da dependência química ela é maior porque é atravessada por preconceitos.
Elizabete Bertele
— As pessoas acabaram se acostumando (com o crack). Se pegar historicamente, com todas as drogas aconteceu isso de alguma maneira. O crack entrou, era coisa nova e as pessoas se chocaram. Mas agora está difundido.
Ledo Daruy, psiquiatra da rede municipal
— Falta é um trabalho maciço de prevenção. As comunidades também precisam de muita ajuda, mas a sociedade não tem interesse, acha que vai investir no que não tem retorno, mas tem retorno sim. Falta então é esclarecer melhor o que é a questão da drogas, seus efeitos, mas com as famílias. Não adianta falar para a criança e o adolescente se o pai não participa disso. Entramos na zona de conforto.
José Luís da Silva Lapa, coordenador da comunidade terapêutica Desafio Jovem Unidos
— Sou combatente de drogas há 20 anos. Não há apoio para esse trabalho. O Café Convívio (serviço de apoio e orientação para dependentes químicos no Desvio Rizzo aberto em 2016 e fechado em 2018) chegou a enviar 80 pessoas para tratamento. Por lá passaram 500 pessoas, havia gente com depressão, que buscavam ajuda para largar o cigarro. Hoje, o dependente químico virou problema e as pessoas pensam assim: "ah, que morram".
Raul Roncada, voluntário que promove a prevenção
— A partir de 1998 houve mobilização. Naquela época, havia muito esforço humano, hoje é mais técnico. Se atuava pensando que pararia o avanço da droga, mas apenas retardou. Hoje o crack é visto de forma mais discreta, mas a dependência continua e segue em alta. Quem se mobiliza hoje é quem passou por problemas, quem já atuou na área. Existe uma linha de pensamento da redução de danos, talvez isso esteja dando a impressão de que está tudo mais conformado. O termo certo é: o assunto foi deixado de lado.
Júlio César Tavares, presidente da comunidade terapêutica Centro Vita
— As únicas pessoas que se importam é do Consultório de Rua. Alguns dão comida para a gente, outros nos veem como lixo. Muita gente tem imagem errada dos usuários de drogas, pensam que são todos ladrões. Eu nunca roubei e não tenho vergonha de dizer que fazia programas.
Usuária de crack de 19 anos
EPIDEMIA
— Crack parece mais pesado, mas é relativo isso porque tu subestima as outras drogas. O crack trouxe a legião de zumbis e as outras ficaram escondidas.
Integrante da Narcóticos Anônimos
— Não temos percepção que estão usando a droga em qualquer lugar. Na relação com a droga, talvez o que tenha acontecido é que com os programas do governo federal e da reforma psiquiátrica, do tratamento em liberdade, de menos repressão, as pessoas podem dizer o que fazem. Antes diziam que não faziam e faziam. Não vou dizer que não aumentou o consumo de drogas, pois a gente vive numa cidade onde aumentou o consumo de tudo. Quanto do terror que havia antes era reprodução da narrativa? Claro que tem pessoas que fazem o uso do crack, que vão ficar com a sua vida presa junto ao crack, como vai ter quem faz o uso de álcool e outras coisas.
Daniel Araújo dos Santos, coordenador do Consultório de Rua
— Comecei a usar crack em Caxias em 2006. Antigamente, a gente se escondia no mato para fumar, não havia cracolândia, não podia aparecer para a sociedade. Nem a polícia pega mais a gente, nem levam o cachimbo. Se somos usuários, ficamos ali. Tá meio que liberado, tipo, na proporção é muito maior. Já vi crianças de 12, 13 anos fumando. Família onde pai, mãe e filho usam. Minha mulher já foi comigo numa boca busca para eu poder fumar em casa, mas não deu muito certo.
Usuário de drogas de 33 anos em tratamento