A reportagem selecionou quatro áreas de Caxias do Sul com elevado número de assassinatos (ver mapas abaixo) nos últimos três anos. Há uma combinação fatal: pontos de tráfico aliados a consumo de crack e outras drogas no entorno. Essas evidências, porém, ainda não foram suficientes para desencadear uma mudança na forma como a cidade encara a problemática. Há locais em que somente a Brigada Militar entra, sendo que todos sabem que vícios e seus reflexos sociais não são aplacados pela polícia. Ninguém descobriu ainda como enfrentar essa ponta da epidemia.
Nesta semana, uma série de reportagens mostra que a problemática da dependência química e seus desdobramentos sociais e criminais já não despertam comoção em Caxias do Sul como no passado.
O cenário é semelhante, muda-se apenas o bairro. Um prédio vazio e com ares de abandono, uma área verde, uma escadaria, um beco ou uma calçada. De repente, o ponto vira referência para uma alma solitária. Em pouco tempo, já são muitos homens e mulheres em torno de cachimbos de crack.
As cenas de uso aberto de drogas, popularmente conhecidas como cracolândias, reúnem pessoas de variadas condições. No passado, eram camufladas pela cidade. Hoje, não há mais restrição. A cada tragada, homens e mulheres demonstram desejos de fugir do vício, outros têm atitude tresloucada e saem para mendigar, assaltar, matar ou serem mortos. Sobram reclamações da vizinhança na prefeitura e na Brigada Militar devido aos transtornos, afinal, ninguém gosta de ver a cena na porta de casa. O pedido de socorro da comunidade geralmente é associado à insegurança gerada pelo crack, mas os assassinatos prosseguem bem como os problemas.
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Não há controle de quantas cenas de uso atraem usuários de crack em Caxias. Acredita-se que o fim dos espaços nas ruas resolveria boa parte da sensação de medo, uma tarefa não tão simples, segundo aponta Juliana Marcon, servidora pública aposentada e ex-presidente do Conselho Municipal de Direitos de Políticas Públicas sobre Drogas (Compod).
Em 2012, policiais militares, Guarda Municipal e Juliana percorreram a cidade para cadastrar usuários em prédios abandonados e terrenos baldios. A ideia era organizar uma ação concreta e coordenada para encaminhar homens e mulheres para tratamento e debelar esses pontos. O projeto ficou pelo caminho e nenhuma ação desse porte surgiu desde então.
— Fizemos um levantamento (em 2012) e identificamos 36 locais. Teve mobilização, passamos nos lugares, foi aquele "bafão", só que isso demandava mudanças no atendimento da saúde e não se mexeu mais — lembra Juliana.
Subcomandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM), o major Diego Soccol estima que as cracolândias em Caxias do Sul não chegam ao número de 30. É quantidade elevada, visto que até 2010 eram raras as pessoas consumindo crack abertamente, lembra o oficial. Como regra, a BM entra toda semana em pontos mais tumultuados. Os PMs abordam, identificam, procuram por armas ou foragidos.
— Não podemos proibir de ficarem nos locais. Já fizemos reuniões com a prefeitura para se observar a questão social. É difícil a conscientização, teria que tentar tirar da rua, encaminhar para tratamento, para um emprego, é trabalho de formiguinha. A BM só vai agir no final — pondera Soccol.
ROUBOS
Nem todo usuário de droga é violento, mas a violência é turbinada pelo tráfico. Os assaltos são um termômetro. Em 2000, quando a cidade tinha 360 mil habitantes e o crack já era tratado como epidemia, os assaltos aumentaram.
Quase 20 anos depois, com população 41% maior, os roubos seguem em alta. De 122 casos por mês em 2000, os roubos em geral subiram para 213 casos/mês atualmente. Em 2000, Caxias fechou um ano com uma taxa de 406 ataques a mão armada a cada 100 mil habitantes. Em 2018, a taxa era de 513 ataques a cada 100 mil habitantes, acréscimo proporcional de 26%.
Embora pareça mais inseguro atualmente, os crimes contra o patrimônio vem diminuindo gradualmente desde 2016 a partir de ações da polícia.
RELAÇÃO FATAL
Áreas com consumo aberto de drogas e tráfico no entorno em que há registro de muita violência:
Bairro Primeiro de Maio
Maior área de concentração a céu aberto de homens e mulheres em torno do crack na área central, o morro de asfalto no final da Rua Borges de Medeiros, caminho para o bairro Primeiro de Maio, é o reflexo do tanto faz. O uso da substância nos muros do Parque Mato Sartori, nas calçadas da Borges e numa área verde nos fundos de um condomínio de classe média é escancarado. Os muros do parque estão chamuscados, há lixo espalhado. Se o vício é problema de saúde pública, a cracolândia do Primeiro de Maio é o imã da morte: 18 pessoas foram assassinadas no entorno em pouco mais de dois anos. A vizinhança reclama da insegurança e dos transtornos, mas não adianta. A cracolândia continua firme como mostra. Resta desviar o caminho.
Loteamento Aeroporto
O loteamento popular Aeroporto segue a mesma sina do Primeiro de Maio e herda o passado da afamada Rua 24, rebatizada anos atrás de Albano Caberlon. A comunidade sabe que há vários endereços para comprar crack, maconha e cocaína. O consumo ocorre, por exemplo, nas dependências do aeroporto: os usuários pulam o muro. Entre o vaievém da clientela de todas as partes de Caxias, surgem confrontos e acertos de contas. As relações complicadas com as drogas resultaram em 9 assassinatos na Albano Caberlon e proximidades desde 2016. Nada mudou desde então.
Zona Norte
A Zona Norte tem suas cenas de uso aberto de crack, especialmente no Belo Horizonte, Vila Ipê e Cânyon. A escadaria entre o Vila Ipê e o Cânyon é um dos pontos de reunião. A vizinhança sofre, mas quando se mora em área afastada do Centro, fica difícil reclamar. Os três bairros registraram juntos 22 assassinatos em pontos de tráfico ou nas proximidades desde 2017.
Vila Amélia e Charqueadas
A região do Vila Amélia e Charqueadas, no Desvio Rizzo, também aparece no mapa com 11 mortes. Foi dali que saiu o assaltante que matou a tecelã Eliane Paula Mazzochini, esfaqueada a caminho do trabalho no loteamento Sanvitto, em 12 de setembro, e os autores da morte de Maicon Roberto Contenda da Silva, 29, morto com golpe de pedra na cabeça, em 6 de julho, entre o Charqueadas e o Planalto Rio Branco. Os criminosos admitiram ser usuários de crack.
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