Desenhista, cartunista e ilustrador, mas que deixou a profissão de lado há mais de 20 anos para viver no anonimato das ruas de Caxias do Sul, Alexandre Siqueira, 47 anos, virou personagem de um caso surreal, marcado por informações desencontradas e teorias em torno do misterioso busto de um homem não identificado.
Há cerca de 10 dias, nas idas e vindas pelo bairro São Pelegrino, ele encontrou a obra de arte em meio a entulhos de construção em uma caçamba na Avenida Júlio de Castilhos. Se a peça estava no lixo, é porque ninguém a queria, logo, tomou posse.
Conhecido no comércio local, Siqueira vive de biscates e sem paradeiro fixo. Passou a semana seguinte carregando a obra de arte, de cerca de 20 quilos, pelo bairro. Detido pela Guarda Municipal na manhã da última segunda-feira (12), foi levado para prestar esclarecimentos na Polícia Civil e se viu obrigado a entregar o que considerava sua propriedade.
A peça de argamassa está guardada num depósito do 1º Distrito Policial (1º DP), anônima e sem dono. Caso não se estabeleça a origem, a identidade e o valor histórico do homenageado, é possível que o objeto seja destruído por falta de utilidade. Um fim que Siqueira tentou impedir.
O burburinho está longe de um desfecho, mas a chave do mistério poderia estar em algum ponto da quadra Avenida Júlio de Castilhos, entre as ruas Feijó Júnior e Coronel Flores. Uma das especulações era de que a peça teria sido furtada, suspeita descartada por testemunhas identificadas pela reportagem.
Nas andanças pelo bairro, Siqueira garante ter visto o busto escondido sob restos de piso de parquet e outros entulhos numa caçamba amarela em frente a uma galeria do Centro Comercial São Pelegrino, que emenda com a galeria do edifício Aldo Locatelli — detalhe que levou a uma equivocada relação do busto com o memorial dedicado ao famoso pintor ítalo-brasileiro, na Igreja São Pelegrino.
Siqueira não lembra da data e do horário exato, mas recorda que era dia.
— Quando tirei do lixo, tinha outras peças parecidas. Tinha a estátua de Jesus virada de cabeça para baixo e fiz questão de ajeitar para cima. O crucifixo também estava quebrado — diz o homem, que optou pelo busto.
Siqueira está sendo sincero quando afirma ter achado no lixo. A comerciante Daiane Basso viu a obra na caçamba na semana passada.
— Tenho certeza disso. O contêiner ficou três dias na frente da minha loja e vi esse objeto jogado entre uns quatro ou cinco vasos sanitários, entre outras coisas. Só não sei quem colocou ali — relembra Daiane.
Um comerciante da rua, que pede para não ser identificado, lembra de ter visto um homem largar o objeto, mas não recorda das características.
Siqueira vai além:
— Esse busto estava numa sala da galeria. Foi dali que saiu, teve uma obra, tiraram tudo de dentro e colocaram o busto fora.
Tom de bronze com ajuda de óleo queimado
Siqueira faz questão de mostrar que está sendo vítima de uma injustiça e escreveu uma carta sobre o caso.
"Empoeirada, suja, de cor branca do gesso natural, abalada, pedindo socorro para não ser extinta. Mas sim, seria eu mesmo a pessoa certa para cuidar dela. Uma obra certamente de um artista plástico, um mestre de conhecimento inigualável" anotou numa folha entregue à reportagem.
Nas primeiras horas em companhia da obra, Siqueira chegou a imaginar que se tratava de um molde de Abramo Eberle. Teve a ideia de lavar a peça e restaurá-la com óleo queimado. O trabalho foi realizado no pátio de um estacionamento na Rua Feijó Júnior, versão confirmada pelo porteiro do local. A intenção era imprimir um tom de bronze ao molde. Com o passar dos dias, recebeu a orientação de que o busto deveria ser retirado do pátio.
Ele diz ter deixado a peça na entrada das salas da galeria do Centro Comercial São Pelegrino na sexta-feira à noite (9) _ que estão sem portas devido à reforma. Na manhã de segunda-feira, uma comerciante relacionou com um possível produto de roubo. Siqueira chegou momentos depois para resgatar a "propriedade" e encontrou guardas municipais em volta do objeto.
— Cheguei na hora errada e no local errado. Fui preso, algemado. Foi injusto tudo isso.
Frequentadores e comerciantes de São Pelegrino dizem que ele tentou vender o busto, o que é veemente negado.
— Jamais quis vender. Eu só restaurei e tentei devolver para o dono das salas da galeria — defende-se Siqueira.
Sala guardava objetos, mas dono desconhece
A sala referida por Siqueira realmente passou por reformas. Na verdade, são dois espaços lado a lado que permaneceram fechados por cerca de 30 anos, segundo vizinhos.
O cabeleireiro Jair Gubert, há anos no centro comercial, conta que o local, com piso no subsolo, pertencia ao Instituto de Previdência do Estado (IPE) e não tinha utilidade. Com o tempo, o condomínio passou a usar como depósito. Recentemente, o empresário Tarcisio Rettore adquiriu os imóveis do Estado e decidiu fazer intervenções para futura ocupação. Contudo, afirma não ter visto o tal busto no depósito improvisado e descarta que a peça tenha saído das salas.
— Absoluta certeza de que só tinha lixo e muito parquet estragado. Visitei a obra 10 vezes e não tinha nada parecido. Mas nós colocamos a caçamba na rua para os entulhos e, antes que a nossa obra começasse, a caçamba já estava lotada de coisas que outras pessoas deixaram — diz o empresário.
O comerciante Hernandes Rizzotto, dono de uma lancheria a poucos metros das salas, tem a mesma opinião de Rettore. Como subsíndico do centro comercial, não recorda de ter visto o objeto e nenhum condômino se apresentou como dono.
— Era só lixo, entulhos — garante Rizzotto.
A reportagem não localizou antigos funcionários do IPE que pudessem reconhecer o busto.
Muitos nomes, nenhuma certeza
Entre as brincadeiras suscitadas pelo busto em São Pelegrino, a preferida é tentar descobrir o nome do homenageado.
— O pessoal está comentando que é parecido com o Tarso Genro. Daqui a pouco vão dizer que é o Brizola — diverte-se o cabeleireiro Jair Gubert.
A historiadora Loraine Slomp Giron viu o busto apenas por foto e levou menos de dois minutos para chegar a uma constatação.
— Não é de Caxias. Pela roupa, pode ser algum juiz, alguma personalidade de outra região. Diria mais parecido com João Pessoa — pondera Loraine.
Heloíse Salvador, coordenadora do Departamento de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural (DIPAHC), reafirma que não há personalidade semelhante no inventário, mas a pesquisa prossegue.
— Como não está no acervo, fica difícil. Alguém precisa conhecer o personagem para que se tenha um valor histórico de preservação. Chegamos a cogitar que isso estava em alguma escola ou empresa.
O 1º DP não recebeu visita de possíveis donos para reconhecer a peça. Se a tendência persistir, ficará no depósito da delegacia até uma decisão judicial.
— Até agora não tem vítima, nem crime, é apenas uma apreensão de objeto. Se o produto é prova de crime (possível furto), vai junto para o Fórum. Ou se destrói com autorização judicial ou se repassa, sempre se tenta a melhor forma — esclarece o titular do 1º DP, Vítor Carnaúba.
Siqueira sonha e gostaria de ficar com o personagem sem nome.
— Se eu merecer, quero voltar a ter esse busto para guardar.
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