Uma ideia que surgiu há mais de duas décadas nos Estados Unidos e chegou ao Brasil em 2015, é agora realidade em Caxias do Sul. O município é o primeiro do Estado a contar com atuação de médicos e outros profissionais da área da Saúde que, voluntariamente, prestam atendimento a pessoas em situação de rua dentro do projeto Médicos de Rua.
A ação ocorre desde maio deste ano, em um domingo por mês, e já totaliza 105 atendimentos realizados. Ela é realizada no salão da Paróquia Sagrada Família que, durante o inverno, acolhe esse público com pernoite e alimentação, com o projeto Hospedagem Solidária, desenvolvido pela Pastoral das Pessoas em Situação de Rua da diocese local. A partir de outubro, as equipes de saúde formadas por profissionais, professores e acadêmicos de nove diferentes áreas, passarão a atender na Praça Dante Alighieri, no centro da cidade.
Ainda em processo de formatação e adaptação à realidade caxiense, o projeto Médicos de Rua contempla a cidade por iniciativa do acadêmico do 10º semestre de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Felipe Albani, 25. Ele conta que no ano passado participou de atendimentos do projeto em Curitiba - onde fica a atual diretoria - e entendeu que a experiência poderia ser válida para Caxias do Sul.
— Começamos a projetar ainda em outubro do ano passado e a primeira ação aqui ocorreu no dia 26 de maio — conta o estudante, que reuniu colegas e professores para a formatação do projeto a nível local.
A coordenação do Médicos de Rua em Caxias é composta hoje por Albani e pelos colegas acadêmicos de medicina Débora Becker, Daniel Pastorio e Bruna Tiemi.
Além de contribuir com o processo de formação dos acadêmicos voluntários, a ação tem o objetivo de levar saúde integral, por meio do atendimento multidisciplinar que é disponibilizado de forma gratuita. O acolhimento ocorre com foco na saúde mental e também promove encaminhamentos à rede municipal de saúde, conforme as demandas apresentadas. Os medicamentos são oferecidos pela rede de saúde pública. O projeto conta ainda com apoio de instituições de ensino no fornecimento de materiais.
— É uma grande parceria porque além de ser um aprendizado para quem está em formação nas áreas da saúde, o serviço é levado ao encontro dessas pessoas que estão vulneráveis e acabam não acessando os atendimentos de outras formas — avalia a diretora de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Fundação de Assistência Social (FAS), Eler Sandra de Oliveira, que intermedia os encaminhamentos.
— Eles realmente abraçaram a causa, trazendo tudo que é necessário. Está sendo muito positivo, temos diversos relatos de que o atendimento é feito com atenção e respeito. Os pacientes dizem que parece até consulta particular — relata a coordenadora da Pastoral responsável pela hospedagem, Teresinha Mandelli Grasselli.
Um olhar às pessoas
Entre voluntários e pessoas atendidas, mais de cem pessoas circulavam pelo salão da Paróquia Sagrada Família onde os atendimentos do Médicos de Rua foram realizados desde às 7h30min da manhã de domingo (4). Por volta das 9h30min, o canto de "parabéns a você" interrompeu por alguns segundos os atendimentos.
Sem jeito, o aniversariante que completava 39 anos levantou da cadeira para receber as felicitações. Luciano Ponce da Silva passava pelo último atendimento da manhã, um corte de cabelo oferecido por uma barbearia da cidade. Para ele, o dia de cuidados foi um verdadeiro presente de aniversário.
— Foi maravilhoso, é uma bênção isso que eles fazem aqui — afirmou Silva, com um sorriso no rosto emoldurado pelo corte de cabelo recém finalizado.
Natural de Santana do Livramento, Silva mudou-se para Caxias há 12 anos e, há dois dias, depende das pernoites da hospedagem solidária, uma vez que a reciclagem onde trabalhava e morava fechou. No circuito de atendimentos montado pelo Médicos de Rua, ele trocou o curativo de uma cirurgia na mão direita pela qual precisou passar há alguns meses após um acidente de trabalho.
Silva foi um dos 47 pacientes atendidos nesta que foi a terceira ação do Médicos de Rua. A primeira edição, em maio, totalizou 22 atendimentos e a segunda, em junho, teve 36. Mesmo ocorrendo junto à hospedagem, o projeto é voltado a todos que desejarem atendimento, sendo previamente divulgado pelas redes de assistência do município junto ao público-alvo.
A atividade conta com profissionais, professores e acadêmicos de diferentes instituições de ensino da cidade. O serviço vai além da Medicina, englobando ainda serviços da Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Nutrição, Odontologia, Podologia, Psicologia e Serviço Social. O quadro conta também com os chamados "voluntários gerais" e membros da Pastoral Nossa Senhora de Lourdes. No domingo em que a reportagem acompanhou o trabalho, cerca de 50 voluntários prestavam atendimentos em um circuito com diferentes etapas:
1 - Acolhimento
O primeiro contato do paciente ocorre com o acolhimento feito pela área da psicologia e serviços social. O acompanhamento psicológico ocorre em outras etapas, inclusive sendo uma das opções de encaminhamento ao final do circuito.
— Como a gente está desde o início, viramos um ponto de referência, o que desenvolve uma confiança que perante as pessoas em situação de rua é difícil de conquistar. Nosso desafio maior é fazer com que concluam todo o circuito de atendimento oferecido — afirma a psicóloga Leandra Pereira Blancos, que é voluntária do projeto.
De acordo com ela, as situações mais comuns entre os pacientes são relacionadas ao uso de cigarro, álcool e outras drogas, além da fragilidade dos vínculos familiares.
— Levamos muito em conta o desejo do ser humano e a maioria deles deseja mudar de vida, porém são estigmatizados e não têm oportunidades. É muito necessário parar, olhar e ouvir essas pessoas para que sejam reinseridas — acrescenta.
2- Teste rápido
Esta etapa é opcional, mas todo paciente que participa pela primeira vez é convidado a fazer. Os demais são orientados a fazerem a cada três meses. Os testes identificam HIV, Sífilis e Hepatite, sendo os diagnósticos feitos com acompanhamento de psicólogos.
3 - Enfermagem
O paciente é encaminhado para o setor de enfermagem para realizar seus sinais vitais e fazer uma avaliação nutricional com a nutrição que avalia possíveis casos de desnutrição. Da UCS, cerca de cinco estudantes a partir do 3º semestre de Enfermagem, bem como três professores do curso integram a equipe voluntária.
— É extremamente importante o que ganham de aprendizado, principalmente na conversa. Procuramos trabalhar o altruísmo dento da formação, o espírito de cidadania — observa a coordenadora da graduação em Enfermagem da UCS, Isabel de Melo, que é uma das voluntárias.
4 - Entrevista / consulta
Nesta etapa o paciente passa pelo atendimento e exame físico realizado por um acadêmico de Medicina. O estudante do 10° semestre na UCS, Vanderlei Bertuol Júnior, 22 anos, atua desde o início do projeto.
— Além de experienciar na prática todo o processo médico, tem a conversa, a troca de ideias, que também é importante pra eles. É uma verdadeira troca de experiências_ comenta.
Para a professora de Medicina de Família e Comunidade da UCS, Marina Mantesso, que também é voluntária do Médicos de Rua, o projeto é uma forma de fomentar o trabalho integral de saúde.
— Aqui eles têm contato com os problemas de saúde reais da população, exercitam a proatividade, experienciando a atuação multidisciplinar, com um trabalho em equipe, em contato com a rede de atendimento. Trabalhamos para que tenhamos cada vez mais médicos integrais que cuidem das pessoas.
5 - Exame físico com acompanhamento médico profissional
Logo após a avaliação feita pelo acadêmico, o caso é discutido com o médico voluntário para que, juntos, definam a conduta a ser seguida. O projeto prevê que os profissionais sejam o mais resolutivos possível, porém, quando necessário, são realizados encaminhamentos para Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou para especialidades do Centro Clínico da UCS.
Uma das voluntárias desta etapa é a médica Bianca Niemezewski Silveira que, pela segunda vez, deslocou-se de Porto Alegre para Caxias do Sul em busca da experiência com os Médicos de Rua.
— O cuidado integral das pessoas é a minha principal motivação. Esta é uma população socialmente estigmatizada, mas o que encontramos aqui são pessoas em diversas situações — avalia.
6 - Acompanhamentos diversos
Após ter passado pela medicina, o paciente é orientado e acompanhado para diferentes áreas, de acordo com o diagnóstico. Nesta etapa ocorre uma ramificação para as áreas da Psicologia (estação terapêutica), Enfermagem (realização de curativos), Odontologia (doação de materiais informativos, kits de higiene bucal e avaliação clínica), Farmácia (distribuição dos medicamentos) e Serviço Social (orientações).
— Tentamos ser o mais resolutivos possível aqui, a gente não quer ter pressa — comenta o idealizador do projeto a nível local, Felipe Albani, que também participou do dia de atividades encerrado por volta das 14h.
SAÚDE E AUTOESTIMA
A sequência de atendimentos do Médicos de Rua contou com um agrado especial para quem participou dos atendimentos no domingo. Dois barbeiros voluntários realizaram cortes de cabelo gratuitos a todos que passaram pelo circuito, sendo a conclusão dos atendimentos um pré-requisito para o serviço estético.
— São pessoas castigadas pela rua, a rua não tem dó. O pouco que a gente pode fazer é muito para eles — afirma Tiago Spadetto, um dos barbeiros voluntários.
Além do encaminhamento para o tratamento odontológico, Jonas Alves, de 53 anos, que vive em situação de rua, saiu da hospedagem com o cabelo em dia.
— Aqui os profissionais tratam a gente com carinho, respeito e atenção — declarou.
:: Sobre o projeto
O projeto Médicos de Rua integra a ONG Médicos do Mundo. A ideia surgiu há 26 anos do médico e professor estadunidense Jim Whiters, que saiu à procura de pacientes pela rua. Com o passar do tempo, a prática foi ganhando seguidores pelo mundo.
No Brasil, o projeto foi criado no final de 2015, por iniciativa do médico Mário Vicente Campos Guimarães que conheceu a atividade nos Estados Unidos e estruturou o formato que, além das pessoas em situação de rua, beneficia alunos, médicos e professores. O Médicos de Rua ocorre atualmente em cidades como Recife (PE) , Itajubá e Pouso Alegre (MG), Curitiba (PR) e, desde maio, em Caxias do Sul.
Mercado de trabalho
Uma pesquisa desenvolvida em parceria entre a Fundação de Assistência Social (FAS) e a Faculdade Murialdo, está sendo desenvolvida junto aos frequentadores do projeto Hospedagem Solidária com o intuito de recolocação destas pessoas no mercado de trabalho.
Um questionário já foi aplicado a 77 pessoas em uma ação que segue até setembro. Os resultados serão debatidos em um seminário para identificação dos desejos e demandas desta população em relação à empregabilidade. A partir disso, parcerias serão buscadas para cursos de qualificação relacionados às necessidades identificadas.