A confirmação da morte de Naiara Soares Gomes, sete anos, no dia 21 de março do ano passado provocou choque, indignação e tristeza. Naquele contexto de forte emoção, tudo indicava que o caso seria o estopim para uma mudança significativa na forma como lideranças podem intervir na educação. Ficou no quase, infelizmente.
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O trágico fim da menina pobre que passou a maior parte da infância em lares provisórios, que ia a pé para a escola porque a família não tinha dinheiro para contratar uma van e vivia uma rotina de invisibilidade até cruzar o caminho de um estuprador deveria ter sido mais do que um drama familiar, mais do que um crime contra a infância. Mas o dia 21 de março de 2018, o antes e o depois dessa data, parece ter servido apenas para reacender debates e não soluções sobre o sistema de transporte escolar, o tortuoso acesso a educação pública e as brechas na estrutura familiar e na rede de proteção.
Na prática, as condições que expuseram Naiara continuam afetando centenas de outros meninos e meninas em diferentes bairros da cidade e a inconformismo ecoa de maneira mais branda inclusive nas redes sociais. A própria criança não teve a lembrança que poderia ter merecido em Caxias do Sul: no último sábado, uma caminhada convocada pelo Facebook para lembrar o primeiro ano de morte reuniu apenas 9 pessoas.
— Acho que, do ponto de vista de um juiz, não vi nenhuma mudança — admite o titular da Vara da Infância e da Juventude de Caxias, juiz Leoberto Brancher.
Naiara morreu na manhã de 9 de março, 12 dias antes de Juliano Vieira Pimentel de Souza, 32 anos, ser preso e indicar onde havia deixado o corpo da menina. No período do desaparecimento e nos dias seguintes após o desfecho do caso, pelo menos cinco temas movimentaram discussões em secretarias, na Câmara de Vereadores e em outros setores. O impacto foi grande, mas nada avançou.
Hoje, Naiara é evocada quando o tema envolve crianças sem transporte escolar percorrem o trajeto de casa até a escola sem acompanhamento de um adulto. A presidente do Conselho Municipal da Educação, Márcia Adriana de Carvalho, vê mudanças e acredita que a morte despertou a preocupação de que todos os estudantes do ensino básico precisam estar na escola e o mais perto possível de casa.
— Todas às vezes em que se fala de transporte nas escolas, o caso Naiara é lembrado. A gente enxerga essa sensibilidade, não ficou esquecido. A questão ainda é lembrada. Por outro lado, temos gargalos porque o planejamento precisa ser pensado conforme a necessidade das comunidades, precisamos de celeridade — pondera Márcia.
A educadora cita como exemplos a alta demanda por vagas nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em especial na zona sul de Caxias do Sul.
— No Rota Nova, as crianças ainda estudam nos locais onde estavam antes, exigem transporte para isso. No Campos da Serra, até hoje, não há escola. Tem uma série de pontos para amenizar.
Brancher diz que o primeiro ano sem Naiara deve ser usado para uma reflexão mais serena de como autoridades e população querem tratar suas crianças, o que talvez não seria possível em março de 2018.
— Há uma exigência de presença, de olhar, de assistência, de acompanhamento, de estar junto caminhando até a escola, de estar junto verificando o que transita nas redes sociais, de se estar junto na intimidade, compreendendo o que as crianças e adolescentes sentem em seus corações. Eu deixaria como proposta de luto de um ano que a gente parasse como cidade, como sociedade e perguntar o que se aprendeu com a perda dessa criança. A gente parou para pensar, saiu na correria e tudo abafou? — questiona o magistrado.
Brechas
Relembre temas que foram debatidos durante o desaparecimento e após a confirmação da morte de Naiara Soares Gomes e o que avançou desde então:
Avançou parcialmente:
Zoneamento escolar
Um dos dilemas das escolas públicas e dos pais é como matricular o filho numa escola perto de casa. A regra do zoneamento escolar, segundo o Conselho da Educação, foi alterada para o ano letivo de 2019. Até então, os pais podiam apontar a escola de interesse para o filho, o que incluía instituições bem distantes da moradia, mas que despertavam interesse pela qualidade do ensino. Neste ano, a norma foi realizar a matrícula da criança condicionada ao seu endereço residencial. Contudo, o critério de zoneamento precisa de ajustes para 2020, pois é necessário adequar o sistema informatizado que rege as matrículas das escolas estaduais e padronizar com o sistema do município. Essa alteração requer esforço regional e dependerá de acordos com outros prefeituras. O zoneamento será discutido no dia 26 de março em reunião no Ministério Público.
Não avançou
Construção de escolas
A mudança do zoneamento escolar pode amenizar o problema de crianças que estudam longe de casa, mas vai exigir a construção de escolas. A Zona Sul da cidade precisaria de pelo menos três novas escolas para atender os anos iniciais do Ensino Fundamental. Doze turmas de educação infantil foram abertas em 2019, mas não há nenhum projeto para erguer prédios para o Ensino Fundamental tão cedo.
Transporte escolar
O ano de 2018 começou confuso na rede de ensino municipal. Nem todos estudantes foram contemplados pelo transporte porque houve falta de interesse de prestadores de serviço na licitação e alguns roteiros foram prejudicados, o que deve ser normalizado em 15 dias. Por outro lado, o município diz que fornece o transporte escolar apenas para a zona rural da cidade (conforme uma lei municipal) e mantém 135 roteiros. Dentro da área urbana, a prefeitura só disponibiliza o serviço onde não há zoneamento, como os loteamento Rota Nova e Campos da Serra e para os alunos atendidos na Escola Dante Marcucci, que vêm da zona sul. O Estado também só fornece para estudantes da área rural. Alunos da zona urbana que precisam percorrer longas distâncias, portanto, seguem dependendo do transporte privado ou de caminhadas.
Ônibus urbano na porta da escola
Outra sugestão debatida, mas na Câmara de Vereadores, era fazer com que os ônibus do transporte público urbano parassem na frente das escolas públicas, evitando o deslocamento da gurizada a pé. Ficou apenas na intenção.
Articulação da rede de proteção
É fato que a rede de proteção precisa ser melhor articulada nos diferentes níveis, o que depende também de investimentos como a abertura de novos Conselhos Tutelares. Nada mudou.
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