Eram 9h quando Marinez dos Santos Pereira, 53 anos, deixou a unidade básica de saúde (UBS) no bairro Esplanada para iniciar as visitas do dia na comunidade do Consolação. Ela é uma dos 177 agentes comunitários de saúde de Caxias do Sul. A reportagem seguiu com ela naquela manhã, 29 de novembro, nublada, quente e dando indícios de que choveria a qualquer momento.
— O que eu mais gosto é estar no bairro. É a melhor parte. Trabalhamos na prevenção, orientamos sobre o uso adequado de remédios... — disse ofegante Marinez, seguindo em ritmo acelerado pelo terreno acidentado.
Foram pouco menos de dois quilômetros de caminhada até a casa de Julieta de Aquino Alberichi, 74, e do marido dela, Ilmo Alberichi, 76. A aposentada limpava a casa e abriu um sorriso largou ao ver Marinez e a equipe do Pioneiro chegando. Todas as alterações no estado de saúde dos moradores desde a última visita, Marinez descreveu em um caderno. As informações vão abastecer um banco de dados que funciona como um prontuário eletrônico de cada indivíduo assistido. O registro recente de Julieta apontava que ela deveria tomar uma vitamina para a anemia, problema que apareceu nos últimos exames. Já a Ilmo, a orientação foi manter a medicação para a hipertensão, doença mais recorrente entre os moradores da região.
— Ela é muito atenciosa, prestativa. As dicas que ela aprende, nos ensina — comentou Julieta sobre o trabalho da agente.
O casal de idosos é exemplo em cuidado com a alimentação e com a regularidade no uso dos medicamentos. Mas nem todo mundo é assim.
— Às vezes, parece que estamos fazendo buraco na água. Mas não desistimos. Até eles confiarem na gente, não é fácil. Há famílias que ainda me recebem no portão. Mas, depois, é maravilhoso — conta Marinez.
O trabalho é feito de ônibus ou a pé. A meta é visitar oito famílias por dia, o que nem sempre é possível. Marinez tem 250 famílias cadastradas. Como não consegue visitar todas dentro de um mês, faz rodízio. Acaba priorizando idosos com hipertensão e diabetes e crianças menores de dois anos. Dois turnos na semana, ela usa para lançar os dados no sistema, um terceiro turno para um grupo de artesanato com os pacientes. Os demais, são dedicados às visitas, em que acaba conhecendo cada um dos moradores pelo nome.
"O papel da agente é esse: lembrar, alertar, avisar"
Às margens da Rua Ivan Antônio Cercato, que circunda o aeroporto, há pequenos depósitos de lixo espalhados. Situação recorrente em muitos pontos do bairro. Como em outras regiões um pouco mais afastadas do Centro, por lá também existe uma área ocupada, onde casas simples abrigam famílias em situação de vulnerabilidade social, com muitos filhos e netos. É em um desses becos que vive Eva Oliveira, 43. Na moradia simples de madeira, moram ela, o marido e dois filhos — outros cinco adultos já não moram com os pais, mas frequentam a casa e, muitas vezes, deixam os netos para a avó cuidar. É o dinheiro que ela recebe do Bolsa Família — R$ 310 por mês — que garante a alimentação, o gás e remédios. As redes de água e de luz são clandestinas e as condições gerais precárias. São em locais como estes que o trabalho das agentes comunitárias pode fazer ainda mais a diferença.
— As vezes não tomava meu remédio da pressão. De tanto ela (Marinez) falar, passei a tomar. A vacinação das crianças, ela também avisa — conta a dona de casa.
— O papel da agente é esse: lembrar, alertar, avisar... é um trabalho lento, mas de pouquinho em pouquinho vamos conseguindo — diz Marinez.
Cuidado vai além da orientação sobre saúde
O objetivo do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) é atender a uma população delimitada e acompanhá-la dando orientações e desenvolvendo ações de prevenção e promoção da saúde. Muitas vezes, esta prevenção pode vir em forma de atividades físicas ou até de lazer. Por isso, integrantes das equipes de ESF mantêm grupos para hipertensos e diabéticos e turmas de atividade postural. Nos encontros, além de orientações sobre de saúde e uso de medicação, a equipe também conversa sobre autoestima. A maioria das atividades dos grupos ocorre na sede da UBS, mas, em alguns casos, as ações ocorrem em espaços cedidos nas comunidades.
As equipes de ESF do Esplanada, por exemplo, desenvolvem com mulheres da comunidade um grupo de artesanato. As peças produzidas são doadas em kits para gestantes que fazem o pré-natal na unidade ou entregues a instituições. O trabalho serve como uma espécie de terapia que em muitos casos evita a depressão.
As situações mais complexas identificadas pelos agentes são discutidas em equipe. O Núcleo Ampliado de Saúde da Família presta apoio com profissionais como assistente social, psicólogo, nutricionista e fisioterapeuta. Além disso, alguns casos são encaminhados para outros serviços da rede como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
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Caxias do Sul tem 32% de cobertura
Caxias do Sul tem 46 equipes de ESF, bem abaixo do máximo recomendado pelo Ministério da Saúde, que é de 240 equipes. Quando um gestor decide ampliar o programa, ele opta por áreas de maior risco de doenças e de vulnerabilidades sociais. Uma série de de fatores é considerada. Mas o que difere uma unidade de ESF de uma unidade básica (UBS) tradicional?
Para a enfermeira Leia Muniz, diretora do território que abrange as unidades dos bairros Esplanada, São Caetano e Salgado Filho (todas com equipes de ESF), o objetivo, tanto de uma UBS quanto de uma ESF, é melhorar a qualidade da atenção básica. Mas é o trabalho do agente comunitário o grande diferencial.
— O grande salto da ESF é a presença dos agentes de saúde da família. Eles são o elo entre a população e a equipe. Nos domicílios, eles conseguem identificar situações que nós, aqui na UBS, não conseguimos — pondera Leia.
Até pouco tempo, a legislação federal determinava quatro agentes por equipe. Recentemente, a exigência passou para um. A unidade do Esplanada tem quatro equipes de ESF, porém, 12 agentes. Elas acompanham 6.311 pessoas em 2.299 famílias. Um índice de 25% de cobertura. Um relatório de 1º de fevereiro (quando o sistema informatizado foi implementado em Caxias) até 28 de novembro apontou um total de 14.684 visitas realizadas.
Segundo Leia, os locais descobertos em função do déficit de agentes são atendidos pelo restante da equipe na unidade. Talvez, por isso, na cidade, conforme a Secretaria de Saúde, a cobertura total das equipes de ESF seja maior, de 32%.
A população do Esplanada é de 25 mil pessoas, segundo o censo do IBGE de 2010. Se considerarmos que cada equipe atenda ao número máximo previsto por portaria do Ministério da Saúde, de 4 mil pessoas no seu território, a soma de atendidos seria de 16 mil habitantes. Ou seja, ainda ficariam descobertos 9 mil moradores no bairro.
Outra diferença é que, na UBS, o contrato de um clínico geral é de 12 horas por semana. No ESF, a equipe é composta por médico, enfermeiro, técnico em enfermagem e agentes comunitários de 40 horas semanais. Isso permite que a equipe passe mais tempo na unidade — oito horas por dia.
Individualmente, um agente pode acompanhar até 650 pessoas. Em média, os profissionais do Esplanada acompanham 525 habitantes ou 190 famílias cada. Atualmente, a unidade está remapeando a área para direcionar os agentes para locais de maior risco.
— Temos falta de agentes. Nem se tivéssemos o número completo de agentes nas equipes, eles não dariam conta da área do Esplanada. Estamos remapeando para ver a necessidade de realocação. Não sei se, neste momento, a prefeitura vai chamar mais agentes porque teria que fazer um processo seletivo. Também tem a questão financeira — considerou a diretora.
O QUE FAZEM OS AGENTES
:: Os agentes comunitários de saúde coletam dados relativos à saúde, epidemiológicos e sociais.
:: Todas as informações são inseridas no sistema e abastecem um banco de dados do Ministério da Saúde.
:: Nos dados da família, tem informações sobre as condições da moradia, de renda, água e energia, animais e etc.
:: No cadastro individual, consta a situação de saúde, como uma espécie de prontuário, se tem algum problema, se faz uso medicinal de plantas, histórico de internação, entre outros; e dados pessoais, como idade, sexo, estado civil, escolaridade, se trabalha ou não, a renda, se tem algum benefício.
:: Com as informações, é possível fazer um diagnóstico de saúde do território e, dessa forma, decidir onde e em que ações aplicar recursos para sanar os problemas identificados.
:: O ministério olha esses dados, faz estudos de doenças mais prevalentes e prioriza ações.
:: Os problemas mais recorrentes são cardiovasculares, mentais e osteomusculares.
:: No âmbito do município, o Sistema Integrado de Gestão de Serviços de Saúde (Sigss) é alimentado e, no final de cada mês, os dados são exportados para o e-SUS, programa do Ministério da Saúde.
Ministério Público pediu aumento de equipes
A 5ª Promotoria de Justiça Especializada acompanha a situação do ESF em Caxias do Sul desde 2012 por meio de um inquérito civil. Instaurado, inicialmente, para apurar irregularidades, teve o objeto modificado para fiscalização do cumprimento por parte do município do Plano de Ação para implantação do Programa de Estratégia em Saúde da Família apresentado, à época, ao Tribunal de Contas do Estado.
Diante da baixa cobertura do programa na cidade, no início de 2017, o Ministério Público solicitou ao município informações sobre a existência de planejamento para o incremento das equipes. A prefeitura chegou a informar que havia solicitado 40 médicos ao Ministério da Saúde por meio do Programa Mais Médicos, com o objetivo de habilitar novas 40 equipes de saúde da família, o que não se concretizou. O Tribunal de Contas considerou o número de agentes comunitários existentes insuficiente para a formação correta das equipes e foi informado que já havia sido realizado processo seletivo e estudos para o chamamento desses profissionais e sua lotação nas equipes.
Porém, em dezembro de 2017, a Secretaria Municipal de Saúde informou ao MP que as recomendações do Tribunal de Contas seriam contempladas pelo Plano Municipal de Saúde 2018-2021, que estava em fase de construção. Mesmo tendo sido solicitado diversas vezes à prefeitura, o MP ainda não recebeu a cópia do plano.
No final de outubro deste ano, a prefeitura criou o cargo de médico de ESF. A intenção, segundo a Secretaria de Recursos Humanos, é realizar seleção no ano que vem. Para isso, será preciso licitar e contratar uma empresa que realize o processo de seleção.
Enquanto isso e aproveitando o fechamento do Pronto-Atendimento 24 Horas, em 17 de novembro, a Secretaria de Saúde realocou médicos que atuavam no Postão em UBSs de referência para reforçar a rede de atenção básica. A Esplanada, por exemplo, recebeu dois médicos (um de 20 horas e outro de 12 horas). Eles reforçam o atendimento à demanda espontânea diária da UBS.
O reforço das UBSs foi determinado em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre prefeitura e o MP. Além disso, ao assinar o documento, o município assumiu o compromisso de priorizar o atendimento da população na atenção básica, nos locais, e pelas equipes de ESF.
A diretora da Atenção Básica de Caxias, Maria Elenir Anselmo, é uma das defensoras do modelo apontado pela Política Nacional de Atenção Básica, justamente pelo fortalecimento dos vínculos com a comunidade, que facilita o tratamento das questões de saúde.
— Viemos aumentando nossa cobertura ao longo do tempo. No início do ano passado (2017) estávamos com 41 equipes. Agora, estamos com 46 e encaminhamos a documentação para a 5ª Coordenadoria Regional de Saúde para mais duas equipes. Então, temos a expectativa de no máximo até início do ano (2019) estarmos com 48 (equipes). Já estamos com previsão de inserção de profissionais de saúde da família em outras duas unidades. Então, passaríamos para 50. Fora isso, depende de outros fatores. Com o cargo de médico de ESF, vamos ver se teremos número de inscritos para começar a pensar em ampliação — disse a gestora.
COMO SE FORMAM EQUIPES
:: Para formar novas equipes de ESF, a Secretaria Municipal de Saúde faz um mapeamento da área a ser atendida, designa quais profissionais farão parte da equipe e quantos habitantes serão atendidos.
:: A documentação é enviada para a respectiva Coordenadoria Regional de Saúde. De lá, segue para Secretaria de Saúde do Estado e, dela, para o Ministério da Saúde, que analisa e publica no Diário Oficial da União o credenciamento das novas equipes.
:: A partir daí, o município pode formar as equipes com a garantia de recursos por parte do governo federal.
:: Para o custeio de cada equipe, o município recebe R$ 7.130.
:: Se o médico da equipe for do programa Mais Médicos, o valor repassado cai para R$ 4 mil porque o médico é pago pelo Mais Médicos.
:: O município entra com cofinanciamento. O valor não foi informado pela prefeitura.
:: As equipes que têm profissionais de saúde bucal, recebem R$ 2.230 a mais. Em Caxias, 24 das 46 equipes têm odontólogos.