Sem saber mais para onde recorrer, Raquel (nome fictício), 29 anos, planeja deixar Caxias do Sul para dar fim ao pesadelo que vive há cerca de cinco anos, depois do fim de um relacionamento. Entre ameaças e agressões sofridas do ex-companheiro nesse período, ela revela que o homem, com quem tem uma filha de nove anos, já a submeteu à roleta russa: municiou o revólver com uma bala e disparou contra ela.
— Ele puxou o gatilho três vezes. Negou fogo nas três — lembra.
Embora hoje tenha medida protetiva contra o agressor, Raquel reconhece que demorou a tomar coragem para buscar providências e que isso talvez tenha gerado o nível de gravidade que a situação está hoje.
Raquel não é um exemplo único. Muitas das mulheres vítimas de violência doméstica sofrem em silêncio. Seja por falta de orientação ou receio, a denúncia ainda é um tabu. Mas não deveria ser. Atualmente, Caxias conta com mais de 50 entidades envolvidas em uma complexa rede de proteção à mulher. O serviço, apesar de não impedir totalmente a violência, tem apresentado números positivos: dos nove feminicídios registrados em Caxias entre janeiro de 2017 e julho de 2018, apenas uma das vítimas possuía medida protetiva. Neste ano, foram duas mortes de mulheres em razão do gênero: Maria Elisabete Caum Machado, 53 anos, em março, e Claudia Teresinha Rosa Fraga, 42, em maio. Em 2017, até agosto, somavam-se cinco assassinatos.
Apesar do receio de parte das vítimas, a procura pelos serviços tem aumentado significativamente. De 1º de janeiro a 31 de julho deste ano, mais de 3,5 mil atendimentos foram feitos pelo Centro de Referência da Mulher (CRM), entidade que presta orientação, atendimento e realiza encaminhamentos às mulheres em situação de violência. O número acumulado até o momento já supera todo o ano passado, quando foram registrados cerca de 3,3 mil atendimentos.
— Um dos fatores para esse aumento ano a ano é que as mulheres que sofriam caladas hoje buscam, de fato, ajuda. É até o perfil da nova geração. As mais velhas, talvez porque vieram de uma geração em que estava naturalizada a violência, toleravam muitas agressões e acabavam pedindo ajuda tarde demais, ou quando a violência chegava nos filhos. Hoje é diferente — afirma a coordenadora do CRM, Thaís Bampi.
Ainda assim, apesar de ser considerada referência como rede de proteção no Estado, Caxias do Sul precisa aprimorar alguns aspectos do atendimento às vítimas, assim como a perspectiva da população sobre o contexto de violência de gênero.
— A gente (sociedade) tem de parar de se omitir. Se vemos alguém assaltando, roubando, ligamos para a polícia. Quando se vê uma mulher apanhando, se pensa: "isso é da vida pessoal dela". Não, é uma lesão corporal, uma pessoa agredindo a outra. Quem vê, tem obrigação de intervir e não julgar. A partir do momento que você olha e diz: " é mulher, deve ter acontecido alguma coisa", você já está julgando e colocando a vítima num lugar subalterno. E é uma vida que está em risco — defende a advogada e integrante da Marcha Mundial das Mulheres, Mônica Montanari.
Expor problema é necessário
A omissão de vizinhos, parentes e até amigos de vítimas de violência doméstica é uma cultura ainda prevalecente. A própria vergonha de se expor a julgamentos sociais ou de familiares é também um dos motivos que levam muitas mulheres a optar pelo sofrimento em silêncio. Para entidades envolvidas na rede de proteção, o comportamento praticado é o inverso do recomendado.
— Já se foi tempo do "briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". É preciso, para não permitir que uma mulher seja morta. Às vezes, dá para ir além da denúncia e ajudar a pessoa, que pode até ser impedida de sair de casa. A denúncia não precisa ser necessariamente via polícia. A vítima pode procurar unidades de saúde, a escola das crianças e outros órgãos públicos que possam intermediar essa situação — comenta a coordenadora do CRM, Thaís Bampi.
Segundo o juiz Emerson Kaminski, do juizado da Violência Doméstica de Caxias, o ideal é a que a mulher que possua medida protetiva informe familiares e todos os conhecidos que o ex-companheiro não pode se aproximar dela, de sua residência ou qualquer ambiente que ela frequente.
— Se ela alerta a vizinhança e colegas de trabalho, por exemplo, essa pessoa ligará para ela ou para a polícia caso veja o homem rondando a casa. E a polícia vai lá e prende. Isso acontece mesmo, não tem conversa. A patrulha é muito eficiente. Não adianta, tem que se expor, não pode ter vergonha — ressalta o juiz.
O que Caxias oferece
O primeiro passo é a denúncia por meio do registro policial. Ao sofrer ameaça ou ser agredida, a mulher deve acionar o telefone 190 ou ir diretamente ao plantão da Polícia Civil. Há também o 180, canal nacional em que denúncias podem ser feitas de forma anônima. A partir do boletim de ocorrência, a vítima de agressão decide se solicita ou não a medida protetiva. O Judiciário tem, então, 48 horas para deferir ou indeferir o pedido. Dessa etapa em diante, o caso é remetido para o Centro de Referência da Mulher, que articula junto à vítima mecanismos que garantam a sua segurança, seja por meio de casa de acolhimento ou outra medida que assegure o acompanhamento da vítima.
— Temos uma rede bastante articulada e mesmo que a mulher tenha receio, ela pode nos procurar só pra receber orientações. O importante é que isso aconteça o quanto antes para que a violência não se torne progressiva e ela seja protegida o mais rápido possível — explica Thaís Bampi, Centro de Referência da Mulher (CRM).
Nenhum caso de morte entre acompanhadas pela patrulha
A Patrulha Maria da Penha atua desde janeiro de 2014. Em Caxias, quatro servidores da Brigada integram o setor, que fiscaliza o cumprimento das medidas protetivas de urgência expedidas pelo Poder Judiciário. Desde que foi implantado, até hoje, nenhuma das vítimas acompanhadas pela Patrulha foi assassinada.
— Atuamos no acompanhamento do cumprimento das medidas protetivas, não avisamos quando vamos fazer as visitas justamente para não facilitar ao agressor. Também atendemos o telefone específico da patrulha e vamos até as residências mesmo que apenas para fornecer apoio e esclarecimentos à vítima — destaca a coordenadora da Patrulha de Caxias, tenente Mileide Ramos Candido.
OS NÚMEROS
Visitas até hoje : 5.295
Visitas em 2018 : 572
Vítimas atendidas até hoje : 1247
Vítimas atendidas em 2018: 154
Prisões até hoje :51
Prisões em 2018: 11
Vítimas
Doze mulheres foram assassinadas neste ano em Caxias. No entanto, nove das vítimas seriam mortes decorrentes da relação com o tráfico de drogas, ou seja, não se caracterizariam como feminicídio.