Ninguém pode afirmar que a história de Dieresson Ribeiro Oliveira da Silva, 15 anos, executado a tiros em São Marcos há menos de um mês (16 de julho) seria diferente se a internação compulsória para tratamento de dependência química tivesse ocorrido. Mas essa é uma das sensações que cercam as pessoas que o conheciam de perto e conviviam com ele. A outra é o sentimento de impotência de quem estendeu a mão, tentou ajudar, mas não teve resultado.
Para muitas pessoas que o conheciam, o desfecho trágico era anunciado: ou pelo grau de dependência ao crack, que havia se agravado muito no último ano; porque o adolescente teria sido cooptado por traficantes ou, ainda, porque ele recusava toda a ajuda que lhe era ofertada.
Vencidas as tentativas de permanecer com a família de origem, ainda com nove anos Dieresson foi encaminhado ao acolhimento institucional em abrigo mantido pelo município, a Casa Mãe Rainha. Em 2016, foi destituído do poder familiar. Foi mais ou menos nessa época que começou o envolvimento dele com as drogas, segundo as instituições que o acompanhavam. Ele passou por internação compulsória para desintoxicação, em meados de 2017, no Hospital São Pedro, em Porto Alegre, e foi levado a uma fazenda terapêutica, ainda no final do ano passado. Mas, sempre voltava ao uso de entorpecentes.
O Conselho Tutelar começou a acompanhar o caso de Dieresson mais de perto em função da infrequência escolar. Quanto mais próximo das drogas, mais ele se afastava da escola. As referências sobre o adolescente são de uma personalidade dócil e educada. Porém, a dependência fez com que as oportunidades ficassem pelo caminho, como a escolinha de futebol no Juventude. Também levava a fugas frequentes da Casa Mãe Rainha, onde era acolhido. A Secretaria de Assistência de São Marcos confirmou que nas atas diárias da casa, eram recorrentes os apontamentos dizendo: "Dieresson não voltou".
– Ele desmoronou de uma maneira que ninguém mais teve controle. Se envolveu muito em brigas e estava jurado de morte – contou a coordenadora do Conselho Tutelar de São Marcos, Elizete Perin.
Como ocorre com a maioria dos usuários que não têm como manter o próprio vício, Dieresson passou a cometer furtos. Os casos chegaram à Polícia Civil, ao Ministério Público e resultaram no cumprimento de medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade e participação em palestras de auxílio a toxicômanos, entre outras.
– Tudo o que foi possível fazer em termos de assistência e atendimento psicológico e de saúde, desde sempre, foi feito. Mas nada disso surte pleno efeito se o próprio favorecido não se vincula a todas esses acompanhamentos fornecidos – avaliou o promotor Evandro Lobato Kaltbach.
A execução de Dieresson faz parte de um contexto de violência vivido pelo município, que registrou 10 mortes violentas neste ano. A maioria, segundo o promotor, está relacionada às facções que articulam o tráfico de drogas.
Os últimos meses
:: O município encaminhou pedido de internação compulsória de Dieresson Ribeiro Oliveira da Silva, 15 anos, em 17 de maio ao Ministério Público (MP). Esta seria a segunda internação deste tipo a qual ele seria submetido.
:: O MP fez a solicitação à justiça em 6 de junho. No documento, o promotor Evandro Lobato Kaltbach, pede a internação "compulsória urgente em clínica", a qual deveria ocorrer pelo Sistema Único de Saúde (SUS) " ou, no caso de falta de vaga, em instituição privada", ficando, o município de São Marcos, responsável pelos custos.
:: Em resposta, no processo, o município, por meio da Procuradoria Jurídica, informou que não havia leitos disponíveis e que Dieresson havia entrado em uma fila de espera. Na área da 5ª CRS são 70 leitos em hospital geral para a região e 40 leitos psiquiátricos na Clínica Paulo Guedes pelo SUS.
:: No dia 12 de julho, uma quinta-feira, o MP reiterou o pedido referindo novamente que a internação deveria ser realizada mesmo que em clínica particular.
:: Esse último pedido aguardava nova decisão do judiciário, quando o adolescente foi morto, na segunda-feira seguinte, com quatro tiros no rosto.
:: Sobre o encaminhamento de paciente para leito particular, a 5ª Coordenadoria Regional de Saúde disse que "existe compra de leito por determinação judicial, na ausência de leito SUS dentro do prazo estipulado para a internação."
Órgãos fiscalizam abrigo municipal
Além de acompanhar o caso de Dieresson, o Ministério Público também fiscaliza o funcionamento da Casa Mãe Rainha. O Pioneiro recebeu denúncias sobre irregularidades no local. Alguns conhecidos do adolescente questionaram também o fato de ele ter tentado e não ter conseguido entrar na casa na madrugada anterior à morte. A Secretaria de Assistência confirma o episódio, mas diz que os monitores seguiram as regras da casa, que estabelece horário máximo de entrada às 22h.
– Ele se colocou nessa situação de risco. Se eventualmente a família reclama de alguma situação, fato é que ela foi a primeira a abandoná-lo. Não fosse o abandono dos pais, a destituição do poder familiar, não fosse o abandono da família extensa, ele não estaria abrigado na Casa Mãe Rainha. A casa tem regras e elas precisam ser obedecidas pelos abrigados – argumentou o promotor Evandro Lobato Kaltbach.
Segundo o promotor, nenhuma das instalações (abrigos) são ideais mas, dentro do quadro que se apresentam, a casa de abrigo em São Marcos é muito boa:
– Tem uma excelente estrutura física para o abrigamento de crianças e também excelente estrutura de pessoal, dando total e completo apoio para todos os abrigados.
O Departamento de Assistência Social da Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos do Estado recebeu denúncias referentes a violações de direitos nos anos de 2016 e 2017 nessa casa. Segundo o departamento, foi feita visita ao local, reunião com a Secretaria de Assistência Social de São Marcos e com a técnica responsável do acolhimento. Foram apontadas as necessidades de adequações ao serviço, as quais estariam sendo implementadas. O promotor confirmou problemas internos na casa em anos anteriores que teriam sido sanados, sem comprometer o funcionamento da casa.
Conforme o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, a equipe técnica na modalidade abrigo institucional deve ter assistente social, psicólogo, coordenador, além de um educador ou cuidador por turno. Segundo o cadastro do Suas, a equipe do acolhimento institucional de São Marcos é composta por três educadoras sociais, uma coordenadora e uma psicóloga. Ou seja, falta um assistente social.
Internação é última tentativa
Para a psicóloga Ana Emília Grings Marconi, especialista em Saúde do setor de Saúde Mental da 5ª Coordenadoria Regional de Saúde (5ªCRS), a internação é vista como uma possibilidade de cura e, ainda, como única possibilidade de cuidado. Contudo, sua função em termos de saúde mental é a estabilização de sintomas. É um trabalho de longo prazo e envolve diversas áreas de atendimento que garantirá a melhoria da qualidade de vida.
– O cuidado em saúde mental deve se dar, preferencialmente, no território, incluindo todos os níveis de atenção, com ações intersetoriais (como cultura, associação de moradores, entre outros) promovendo a inclusão. Assim, o plano de tratamento deve ser discutido com o próprio usuário e a família, especialmente, tratando-se de internações compulsórias – explica a psicóloga.
O caminho até um leito
:: A internação em saúde mental pode ser de 3 tipos: voluntária (realizada com o consentimento do usuário); involuntária (realizada sem o consentimento do usuário e sem ordem judicial, a pedido do médico) e compulsória (quando determinada pela justiça). Na internação compulsória há ordem judicial, contudo, a internação precede de avaliação e indicação médica.
:: Após a expedição da ordem judicial, normalmente, o fluxo é pelo serviço que avaliou o usuário (Unidade Básica de Saúde ou Centro de Atendimento Psicossocial). A regulação dos leitos da 5ª Coordenadoria Regional de Saúde (5ªCRS) ocorre na Central Estadual de Regulação Hospitalar, com sede em Porto Alegre, pelo núcleo de saúde mental. Em situações onde o município possui central de regulação, como é o caso de Caxias do Sul, o fluxo não passa pela central estadual.
:: O núcleo de saúde mental da Central Estadual de Regulação Hospitalar utiliza o critério de classificação de risco para acesso ao leito, de acordo com a gravidade dos sintomas apresentados, risco de vida, exposição ou autoagressão, por exemplo. A existência de ordem judicial entra nesta classificação, mas não é o fator principal.
:: Os pacientes da Serra são encaminhados para instituições da própria regional e, na falta de leito ou necessidade específica de algum caso, podem ser encaminhados para outras regiões, principalmente, metropolitana e Hospital São Pedro, em Porto Alegre. A maioria dos casos é atendida dentro da região. A internação compulsória pode ocorrer apenas em ambiente hospitalar, não incluindo as Comunidades Terapêuticas. Nestes locais, a permanência é voluntária, para casos com sintomas estabilizados, para manutenção da abstinência. Não possuem estrutura nem capacitação técnica para atendimento de crise e realização de desintoxicação.
:: Na área da 5ª CRS são 90 leitos em hospital geral (20 são contratualizados pelo município de Caxias do Sul, para população local) e 160 leitos psiquiátricos na Clínica Paulo Guedes pelo SUS (destes, 120 também são contratualizados por Caxias). O Estado regula 40 leitos da Paulo Guedes.
Fonte: Setor de Saúde Mental da 5ª CRS