Em maio do ano passado, Marisa Santos Maciel, 34 anos, recorreu às autoridades de Vacaria para pedir socorro. Não era a primeira ameaça do ex-companheiro e a ela temia pela própria vida. Marisa saiu da delegacia sem perspectiva e voltou para casa no bairro Municipal. Horas depois, levou cinco tiros enquanto estava deitada ao lado de uma filha. A criança sobreviveu sem ferimentos, mas a mãe morreu depois de 50 dias no hospital. O autor dos disparos, Joanir Hoffmann dos Passos, 57, responde pelo crime na Justiça.
Marisa virou personagem esquecida entre a população. Seu triste fim sequer teve cobertura na imprensa da Serra e hoje é mais um nome na pilha de processos que abarrotam as mesas do Judiciário. É um dos desfechos da violência doméstica que a promotora de Justiça Bianca Acioly de Araújo leva como aprendizado. O caso escancarou a inexistência de um abrigo para acolher mulheres ameaçadas por companheiros e namorados agressivos e a desarticulação da rede de proteção em Vacaria.
Desde que a promotora lançou o projeto Acolher, em 2015, superar a burocracia para ajudar as vítimas da brutalidade dentro de casa tornou-se uma obrigação. Tudo começou com palestras. Hoje, é um grupo que se fortalece com a ajuda de religiosas, de profissionais liberais e das vítimas. Há espaço também para homens arrependidos, dispostos a refletir sobre a própria agressividade. Os voluntários ousam e querem mudar a realidade de uma comunidade onde a violência de gênero é superior aos casos registrados em Caxias do Sul, por exemplo.
Com uma população de 31 mil mulheres, segundo o censo de 2016, Vacaria tem proporcionalmente mais agressões, estupros e tentativas de feminicídios do que Caxias, onde habitam 221 mil mulheres. Esse ódio contra esposas e namoradas também parece ser mais peculiar na cidade dos Campos de Cima da Serra. Quatro vítimas sofreram graves queimaduras por parte de companheiros num período de um ano.
Uma delas, Eva Djair Pereira Boeira, 67, não resistiu e morreu em janeiro deste ano. Em seis anos, sete mulheres foram assassinadas — quatro delas perderam a vida desde dezembro do ano passado. No mesmo período, a polícia registrou 15 tentativas de assassinato, quase mil agressões de graus variados e outros 35 estupros. São números fortes, mas a realidade seria ainda pior já que muitos casos sequer são denunciados, postura que estaria mudando gradualmente.
— Nossa cidade está ficando menos preconceituosa em relação ao tema — avalia Bianca.
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Liderança
A promotora de 37 anos tem sido a condutora da mudança de comportamento. Natural do município, Bianca já foi delegada da Polícia Civil e migrou para o Ministério Público há sete anos. Ela atuava em outras cidades e só retornou à terra natal em 2014. Durante um ano, empilhou acusações contra criminosos no Tribunal do Júri até que surgiu a vaga na área de violência doméstica. Bianca abraçou um setor prejudicado pela falta de articulação em rede. Não havia sequer um local para abrigar mulheres que corriam o risco de serem assassinadas, espaço só aberto no final do ano passado.
O projeto Acolher é inspirado numa iniciativa semelhante do MP de São Paulo. O objetivo principal é apresentar às mulheres o que é a Lei Maria da Penha e como a rede de proteção pode fazer a diferença. A partir disso, Bianca criou parcerias para desenvolver três ações distintas: atender a mulher agredida, estender o olhar sobre o agressor e desenvolver atividades terapêuticas e profissionalizantes como forma de dar autonomia às vítimas.
A provocação lançada há três anos começa a colher frutos, com a criação de grupos de trabalho preenchendo nichos de atuação e a redução dos índices de violência.
— Já ocupamos o 8º lugar no Estado no ranking da violência contra a mulher em 2015, baixamos para a 17ª posição em 2016 e para 21º lugar no ano passado — comemora Bianca.
O PROJETO
O Acolher tem três fases que estão sendo desenvolvidas simultaneamente:
:: Acolher 1 - Por meio de convite, todas as mulheres vítimas de violência são recebidas na sede do Ministério Público para esclarecimentos e encaminhamento a programas de apoio. Paralelamente, são desenvolvidos uma campanha de conscientização e o projeto de Design Social, que consiste em oficinas para preparar mulheres por meio de oficinas, aulas, palestras e ações de autoestima, além de workshops com designers para a criação de coleções de produtos com o intuito de gerar renda.
:: Acolher 2 - Promove encontros para reflexão de homens agressores para que eles participem do processo de responsabilização pela conduta violenta. Com isso, procura-se fazer com que os autores busquem a reeducação e a reabilitação. A adesão é voluntária, mas pode ser por indicação judicial como forma de medida cautelar diferente da prisão.
:: Acolher 3 - Em parceria com a Cáritas Diocesana de Vacaria, envolve projetos nas comunidades e na Casa Acolher, espaço criado para oficinas, terapias e encontros reflexivos. Nos bairros, serão promovidos cursos profissionalizantes com mulheres como forma de dar mais autonomia a esse público.
COMPARE:
Com menos habitantes, Vacaria tem proporcionalmente mais violência contra as mulheres do que Caxias do Sul. Entenda por que na comparação do total de casos registrados em cada cidade e quanto o volume de ocorrências corresponde em relação à população de mulheres. Caxias do Sul tem 221.952 mulheres e Vacaria tem 31.259 mulheres (censo estimativa populacional de 2016).
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