Condições precárias de trabalho, falta de alimentação e de materiais pedagógicos e de higiene, salas de aula improvisadas, esgoto correndo a céu aberto, tempo estipulado para comer e alimentos próprios para consumo jogados fora são algumas situações denunciadas por professores que atuam em escolinhas infantis conveniadas à prefeitura de Caxias do Sul. O Pioneiro conversou com profissionais que atuam ou atuaram em pelo menos 10 estabelecimentos. Com medo de represálias, nenhum profissional quis que o seu nome ou da escola onde trabalha fosse revelado. A reportagem também ouviu os pais de crianças.
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As denúncias chegaram ao Sindicato dos Empregados em Entidades, Culturais, Recreativas, de Assistência Social, de Orientação e Formação Profissional (Senalba) e à Câmara de Vereadores, que decidiram inspecionar quatro escolas ontem à tarde. Na primeira parada, na Escola de Educação Infantil Dr. Renan Falcão de Azevedo, no bairro Reolon, a entrada não foi permitida. O roteiro seguiu para o Bom Pastor, Consolação e Salgado Filho (leia mais na página 18).
Implantado no ano passado, o novo modelo de gestão compartilhada entre a prefeitura e três entidades – Associação de Educação Integral Educaritá, Associação Educacional Jardelino Ramos e Centro Filantrópico Simon Lundgren – compreende 45 escolas e cerca de 4,3 mil crianças com idades entre zero e cinco anos. Por meio desse convênio, as entidades passaram a ter mais autonomia para executar, por exemplo, pequenas obras, fazer manutenção e comprar materiais pedagógicos e de higiene graças aos repasses do município. A prefeitura, por sua vez, é responsável por executar obras maiores e por enviar a alimentação.
Conforme a Secretaria Municipal de Educação (Smed), o município fiscaliza a prestação do serviço nas escolas semanalmente. Uma equipe formada por sete assessores monitora itens como alimentação, limpeza e infraestrutura. Nem todos seriam avaliados na mesma visita.
CUIDADOS
Conforme uma pedagoga ouvida pela reportagem, na escola onde ela trabalha apenas uma profissional é responsável por monitorar 45 alunos, em três salas, durante a hora do sono. Ela afirma que já ocorreu de um aluno de três anos ser colocado para dormir no corredor porque estaria inquieto e iria acordar os demais.
– Questionei a medida e tive de engolir em seco e ficar quieta porque me disseram que é assim e tem que seguir as regras. É muito triste – diz a pedagoga.
Outra professora de 38 anos e que atua há 10 anos de rede municipal denuncia o grande número de crianças para cada educadora. Na sala dela, onde caberiam 17, há 21 alunos. A superlotação, explica ela, faz com que as professoras não consigam dar a atenção necessária às crianças. Além disso, alunos de faixas etárias diferentes acabam ficando juntos:
– Cada educadora ficaria com as crianças de uma mesma faixa etária mas, com o aumento o número de crianças por turma, acabam misturando. Assim, há uma probabilidade maior de ocorrer algum acidente entre os pequenos e os mais velhos.
Alimentação
Entre as situações relatadas por professoras estão a negativa aos pedidos das crianças para repetir um prato de comida ou comer mais uma fruta. A situação ocorreria por falta de alimentos ou porque haveria um curto prazo para comer.
– O que me dói mesmo é a hora do lanche. Isso acaba comigo. Eles comem em cima de guardanapos, em vez de comer nos potinhos, para que tenha menos demanda de louça na cozinha. Mas o pior é a orientação da coordenadoria da escola: eles têm 15 minutos para comer ou temos que tirar a comida e pôr fora. Eles são pequenos e, às vezes, sobram só cinco minutos para comer até que cheguem até o refeitório. Como educadora, fiquei doente com essa situação. As crianças falam “não, profe, eu ainda não acabei” e tu ter de tirar a comida e colocar fora sabendo que muitas crianças só comem na escola? – emociona-se uma professora de 40 anos.
A docente afirma que questionou a coordenadora, que disse ser essa a orientação. Outra profissional da mesma instituição retira a comida e deixa as crianças comerem nos corredores antes de voltarem para as salas de aula.
Para outra professora de 38 anos, a restrição na alimentação é constrangedora:
– Ver uma criança comer meia banana no lanche da tarde é uma vergonha. A alimentação é escassa.
– Eles pedem mais e não temos como dar mais comida porque as cozinheiras nos dizem que aquela quantidade tem de ser suficiente para toda a semana – enumera outra docente.
Uma profissional de 28 anos revela que o cardápio está diferente do ano anterior e falta comida onde ela trabalha:
– Tem dias que no almoço é apenas arroz e feijão. E no lanche, muitos dias, vem apenas um pedacinho de fruta, sem repetição.
A situação é a mesma em outra escola no bairro Cinquentenário. A professora de 47 anos conta que sempre falta comida.
– Tem que fazer milagre com o que tem. O resto nós driblamos, mas a comida falta sempre. Água, por exemplo, não tem nem filtro na escola. Nós buscamos numa igreja do bairro para as crianças tomarem – denuncia.
Material pedagógico
As professoras relatam que faltam materiais pedagógicos e que são cobradas tanto pelas coordenações das entidades quanto pela prefeitura sobre a parte pedagógica. Uma professora de 31 anos desabafa sobre a situação:
– Antes, o material era fornecido pela prefeitura. Hoje, seria pelas instituições, mas, até o momento, não enviaram nada para as escolas. Nós compramos os materiais com o nosso próprio dinheiro para poder desenvolver um bom trabalho com as crianças. Por se tratar de uma vaga pública, não se pode exigir que os pais tragam. Além disso, sabemos que muitos não têm condições para adquirir.
A situação é a mesma enfrentada por uma educadora de 28 anos:
– Nos anos anteriores, recebíamos material da Smed (Secretaria Municipal de Educação) duas vezes por ano. Neste ano, não recebemos nada e o pouco que temos é o que sobrou do ano passado. O que conseguimos comprar é com o nosso próprio salário.
Para driblar a falta de dinheiro, as docentes contam que fazem sorteios nas escolas para comprar o que falta
– Fizemos rifas e nos unimos para comprar o material, porque nem folha de desenho tinha na escola – conta uma professora.
Uma coordenadora de escolinha desabafa:
– Sinto como se estivesse de mãos atadas. A ideia das educadoras trabalharem oito horas foi perfeita, mas o sistema inchou e ela não é bem executada. São 90 dias de desgaste porque estamos deixando o pedagógico de lado e depositando crianças na frente da TV para que elas não se machuquem. Essa é a minha realidade. Brinquedos, por exemplo, precisamos repor de três em três meses.
Higiene e brinquedos
Uma professora de 25 anos relatou ao Pioneiro que a entidade responsável pela administração da escolinha e uma equipe da Smed já estiveram no local para realizar o levantamento das reformas que precisam ser feitas. A inspeção ocorreu em fevereiro e, até agora, os vasos sanitários seguem interditados e pequenas obras e reformas não foram feitas. Ela se queixa da falta de material de higiene:
– Só sobrou um par de luvas para trocar os bebês no berçário.
Os brinquedos também estão em péssimas condições, segunda conta uma professora de 29 anos:
– Brinquedos quase não temos. As profes, muitas vezes, fazem arrecadação para que as crianças tenham com o que brincar. Não recebemos nada, nem por parte dos convênios nem pela Smed.
Outra pedagoga de 37 anos relata que comprou brinquedos por conta própria porque os da escola estão velhos ou quebrados.
– Comprei para que eles tivessem com o que brincar, porque não tem nada. A situação é bem triste. A maioria não tem nada em casa nem na escola – afirma.
Obras inacabadas
Algumas escolas têm problemas de infraestrutura, o que dificulta o atendimento às crianças. Para uma pedagoga de 37 anos ouvida pela reportagem, o que mais entristece são as condições da escola onde trabalha.
– As obras começaram em dezembro e até agora estão do mesmo jeito. Tem buracos e terra jogada na grade onde os bebês brincam, e está lá daquele jeito – reclama.
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