Um levantamento realizado pela Secretaria Municipal da Saúde confirmou o que a população de Caxias do Sul sentia na pele há muito tempo ao passar madrugadas e madrugadas em filas de unidades básicas de saúde (UBSs): faltam médicos na rede pública da cidade. E o déficit não é pequeno: em pelo menos 32 das 48 UBSs de Caxias, o atendimento aos pacientes é considerado insuficiente. No total, são 3.664 consultas que deixam de ser realizadas por semana.
O número tem como referência o quadro de profissionais atuando nos locais e a carga horária deles na última sexta-feira, dia 20. O cálculo é realizado a partir da contagem das horas trabalhadas dos médicos, e não pelo número de profissionais, porque a carga horária do contrato de cada profissional varia e os médicos podem trabalhar em mais de um local.
No bairro Bela Vista, por exemplo, a prefeitura considera que faltam 36 horas de atendimento semanal por médicos clínicos, para que a população seja atendida de forma satisfatória. Esse déficit seria corrigido, na visão do município, com a nomeação de três profissionais trabalhando 12 horas por semana. Considerando que cada consulta leva em torno de 15 minutos, conforme recomendação do Ministério da Saúde para fins de agendamento, é possível estimar que os moradores do bairro deixam de receber 144 consultas por semana.
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Além de clínicos, nas UBSs faltam pediatras, ginecologistas e também médicos da Estratégia de Saúde da Família (ESF) que, na falta dos especialistas, poderiam suprir alguns atendimentos na rede básica. Ao mesmo tempo em que reconhece a existência do problema, a Secretaria da Saúde projeta soluções: conforme o levantamento, a falta de clínicos gerais será suprida pela nomeação de profissionais já aprovados em concurso, e a falta de especialistas a partir da realização de novos processos seletivos.
Mas não é tão simples quanto parece: dos 35 médicos aprovados no concurso de 2016 que foram nomeados pela prefeitura no início de abril deste ano, 16 desistiram de assumir o cargo. Dos 19 restantes, um assumiu e 18 pediram adiamento da posse, prevista para 4 de maio. Eles têm até o dia 19 de maio para efetivamente começar a trabalhar no município. O desinteresse pela nomeação iniciou ainda em reunião realizada no último dia 5, no auditório da prefeitura. Na ocasião, dos 35 nomeados, apenas oito compareceram ao encontro. Mesmo que a Secretaria Municipal de Recursos Humanos alegue que ir a reunião não era obrigatório, a desistência de 16 médicos é um indicativo que chama atenção.
O desinteresse demonstrado pelos profissionais chamados a atuar na área pública é recorrente e indica que a realização de concursos, ao menos nos moldes atuais, não está dando conta da falta de profissionais na velocidade necessária: dos outros 18 médicos aprovados no concurso de 2016 que já haviam sido nomeados, somente cinco decidiram assumir. No concurso anterior, realizado em 2015, o padrão se manteve: de 68 nomeados, apenas 29 ficaram com o cargo.
DIAGNÓSTICO
Faltam médicos interessados para atender na Estratégia Saúde da Família
No levantamento que revela a falta de médicos nas UBSs, os únicos casos que não têm solução prevista pelo município são os de falta de profissionais da Estratégia Saúde da Família. Na maioria das situações em que não há profissionais, a prefeitura aponta que existe a liberação para contratação, mas não há interessados na vaga. Por outro lado, de acordo com uma profissional que atua em uma unidade básica e não quis se identificar, a prefeitura não tem realizado concursos específicos para a função para suprir a demanda.
— Fazemos atendimentos de ginecologia e pediatria, além de visitas às famílias. Pelo menos 90% dos problemas de saúde se resolvem na UBS, mas cobertura é falha — lamenta.
Ela reconhece, porém, que muitos médicos não querem trabalhar para o município por encontrar a remuneração oferecida insuficiente.
— Se pagasse melhor, teria gente. Médico tem essa dificuldade, é um problema da minha categoria. Se eu estivesse essas 40 horas (semanais de trabalho) em plantão, receberia de três a quatro vezes mais — aponta.
Condições de trabalho e remuneração do SUS são criticadas
As razões pelas quais os médicos que passam pelo processo seletivo optam por não trabalhar no sistema público variam. Entre os profissionais contatados pelo Pioneiro, as justificativas passam por motivos pessoais e pelo tempo entre as provas e a nomeação, o que incentiva a mudança de planos de carreira. As condições de trabalho e remuneração do SUS também são alvo de críticas.
Um dos concursados, que teve o nome preservado pela reportagem, desabafa sobre o motivo não assumir a função para a qual foi nomeado. Para ele, hoje não há mais estabilidade na prefeitura de Caxias, e atuar na área de saúde se tornou um risco pelo sucateamento do setor que atende a comunidade:
— Nesse governo, trabalhar na saúde se tornou um perigo. Somos taxados como improdutivos, preguiçosos, um encosto para o município. Hoje no Postão (Pronto-Atendimento 24 Horas), por exemplo, temos médicos extremamente competentes e capacitados, a grande maioria especialista em alguma área, como cirurgiões, clínicos, neurologistas e radiologistas. Mas o prefeito quer terceirizar tudo. Vale a pena terceirizar para conseguir mão de obra mais barata? — questiona o médico.
Segundo ele, esse sucateamento na estrutura de saúde compromete não apenas os profissionais, mas a comunidade.
— Eu ganho a mesma coisa fazendo plantões em outros lugares, em que tenho exames diagnósticos acessíveis, como tomografias, ecografias, um laboratório ágil e avaliações de especialistas. Se precisar internar um paciente grave, uma UTI estará disponível — compara.
Conforme ele, no Postão e na unidade de pronto atendimento (UPA) Zona Norte, os pacientes ficariam dias aguardando leitos para serem internados, prejudicando muito o estado de saúde e expondo os profissionais que cuidam dos pacientes.
— Um paciente com suspeita de trombose precisa ser internado? Logicamente que não, a não ser que a suspeita se confirme. Mas no Postão e na UPA, pela falta desses exames, o paciente precisa ser internado, ocupar um leito do SUS, para, então, poder fazer os exames no hospital. Não confirmou o diagnóstico? O paciente terá alta, mas você tem noção do custo desnecessário que essa internação gerou? Dinheiro jogado fora e pacientes sem leito — aponta.
Acesso universal
A secretária de Saúde, Deysi Piovesan, defende a gestão compartilhada no Postão, com o remanejo de profissionais:
–Dizem que estamos querendo privatizar o SUS. Privatizar o SUS é não ter mais a saúde como direito da população. A nossa ideia no município é o contrário. É poder utilizar o recurso de maneira que possa garantir a continuidade do sistema. No momento que se consegue alocar os recursos humanos que estão dentro do Pronto-Atendimento para fortalecer a rede básica, se garante o acesso universal, o vínculo e a continuidade. E se garante o atendimento pontual, agudo e de urgência por meio de um parceiro (no Postão).