Se para boa parte da população é difícil visualizar o que acontece com o lixo depois de descartado, o processo de reaproveitamento do material pode ser ainda mais abstrato. Uma das empresas que faz parte dessa cadeia, em Caxias, é a CTS Papéis. A companhia de Canoas abriu filial no município há cerca de 15 anos e hoje movimenta cerca de 1,1 mil toneladas por mês de recicláveis somente em Caxias. Cerca de 85% desse volume é composto de papéis e papelão e 15% de plásticos.
O gerente financeiro da empresa, Carlos Augusto Basso, explica que a empresa compra os materiais de diversos fornecedores como supermercados, empresas ou associações de reciclagem. Após, compacta o produto, preparando-o para o uso na indústria.
De acordo com ele, para que o negócio compense, é necessário operar com uma quantidade de materiais muito grande, já que a margem de lucro por quilo vendido é baixa. Por isso, a maior parte dos produtos é recolhido de grandes estabelecimentos. Mesmo assim, a empresa optou por construir uma rede de pequenos fornecedores para evitar que os materiais descartados fossem para aterros sanitários.
— Quem trabalha com reciclagem, principalmente as pessoas mais humildes, está numa posição de vulnerabilidade tão grande que, às vezes, não sabe nem fazer contas. E, com mais frequência do que a gente gostaria, escuta histórias de que eles são enganados — afirma Basso.
A empresa, no Parque Oasis, funciona como ponto de apoio para associações e pequenos recicladores que precisam vender materiais coletados.
Apesar da integração bem sucedida com a cadeia, Basso acredita que o aumento da eficiência no setor da reciclagem passe pela separação dos resíduos na origem, ou seja, na casa das pessoas.
— Toda a sociedade economizaria muito dinheiro. A maioria do papel que a gente vê aqui não veio da casa das pessoas. Veio de uma indústria ou do varejo. Depois que caiu nas pessoas, é bem difícil. E, às vezes, eles jogam a responsabilidade para as cooperativas, como se as cooperativas fossem fazer mágica. Não existe como solucionar o problema do lixo no Brasil pensando que alguém manualmente vai separar. Precisamos que as coisas aconteçam num fluxo rápido — alerta o administrador.
Ele também crê que são necessárias melhorias na indústria, considerada a outra ponta do processo. Segundo ele, hoje o Rio Grande do Sul conta com poucas empresas do setor, o que aumenta os custos de operação.
— A grande maioria do plástico e do papel se recicla em Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Setenta por cento meu material vai para fora do Estado. Poderia ter uma indústria, se o material já está aqui e depois alguém vai ter que comprar de volta esse material transformado — aponta Basso.
Apesar das dificuldades, em Caxias do Sul a qualificação da cadeia da reciclagem já é um trabalho intersetorial consolidado. O desafio para a professora Ana Maria Paim Camardelo se divide em conscientizar a população sobre o descarte do lixo, atrair os catadores para a formalidade e qualificar as associações de recicladores. Confira trechos da entrevista com a pesquisadora, que é doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais (NEPPPS) e da Incubadora Social e Tecnológica da Universidade de Caxias do Sul (UCS)
SEPARE O LIXO CORRETAMENTE
Pioneiro: A Codeca e as associações de reciclagem reconhecem que a forma como os resíduos são descartados pela população impede o reaproveitamento de boa parte dos materiais. Como você avalia essa situação?
Ana Maria Paim Camardelo: É realmente um problema bem sério. A sociedade, que somos nós, ainda tem dificuldade de dar a separação adequada aos resíduos. Tem um estudo que fizemos: pegamos uma quantidade do resíduo com potencial para reciclagem dos contêineres amarelos e separamos. Às vezes, chega a 70% em determinadas regiões, que acabam não podendo ser aproveitados porque estão sujos ou misturados. Diante disso, a gente começou um trabalho em duas áreas onde essa situação está bem complicada. Quem nos indicou as duas regiões foi a Codeca, que tem um controle muito bom. A princípio, são os bairros Petrópolis e Panazzolo. São regiões nobres da cidade. Outro lugar que nós já sabíamos que é problemático é o centro da cidade. Vamos fazer um projeto-piloto de educação ambiental, envolvendo toda a comunidade, e depois ver se isso está melhorando. A Secretaria da Educação recomendou que começássemos em março.
A atuação dos catadores informais é um problema?
Quando nós começamos esse último projeto (em 2013) que finalizou agora, o número de catadores informais era infinitamente menor do que nós temos hoje. Com a crise, a medida que foram passando os anos, esses catadores foram se ampliando. No último ano, eu diria, é algo assustador. Quando a gente caminha, nos bairros mais populares, vemos que numa mesma rua se encontram três “minireciclagens”, em casas mesmo. E eles enfrentam vários problemas, não têm as condições adequadas, atrapalham a própria vizinhança. Por outro lado, são pessoas que não encontraram absolutamente nada no mercado de trabalho. Então, nós precisamos juntar esforços, a sociedade e o poder público. A alternativa seria poder organizar essas pessoas, criar mais associações, organizar esse trabalho que é totalmente informal. E, ao mesmo tempo, não marginalizar essas pessoas. Quando vamos nas associações com que trabalhamos, mostramos que eles não são inimigos, embora atrapalhe o trabalho deles, claro. É algo que nós precisamos criar fórmulas. Na universidade, no ano passado, criamos uma incubadora social. Nós pretendemos, na medida do possível, encontrar editais, parceiros, tanto públicos quanto nas organizações privadas, para poder trabalhar na profissionalização dos catadores, das associações e criar novas, pois só essas não dão conta de todo esse setor. Outra coisa que ampliou bastante foi o número de associados nessas associações. Para ter uma ideia, no primeiro contato que a gente teve, mapeamos 169 catadores associados, em 2013. Agora, até meados de 2017, nós estávamos com quase 400 pessoas. Do catador informal, a gente não tem esse dado. Pelo tempo que a gente vem acompanhando, essa flutuação se dá em função da situação econômica. Quando as pessoas encontram emprego, a primeira providencia delas é sair da catação. Se tu observar na rua, tem aquele (catador) tradicional, aquelas pessoas em situação de rua, mas tem todo um público diferenciado, pessoas que até ontem estavam no mercado de trabalho e hoje estão fazendo essa catação na rua.
Há outra questão a ser superada no setor?
É a profissionalização, o investimento. Têm algumas associações com condições medianas, mas nenhuma com a estrutura ideal. E algumas têm condições sub-humanas de trabalho, não tem nenhuma esteira, é tudo aberto. Essa é uma questão de investimento, no sentido de infraestrutura e da profissionalização, de poder estar trabalhando com eles, poder transformar aquilo num negócio, e num negócio que seja autossustentável. Que eles consigam ter lucro. Queremos que as pessoas possam saber calcular o valor, saber se reunir e vender os materiais. Às vezes, a documentação da associação não está toda em dia. Então, eles não podem emitir nota e não podem vender para empresas. Eles vendem para um atravessador. O valor que eles retiram, mesmo fazendo o trabalho pesado, é menor do que eles poderiam ganhar se já estivessem mais estruturados, se pudessem ter resíduos suficientes que abastecesse uma determinada empresa. Nossa ideia, com a incubadora, é que a gente possa ter investimentos para pegar uma associação e trabalhar com ela um ano. Qualificando em todos os aspectos do processo de trabalho. Consequentemente, aumentaria a renda deles. Aí termina com uma, continua monitorando, e pega outra. Catador é uma profissão regulamentada desde 2002, mas é muito precária ainda.
O trabalho com resíduos, hoje, está muito ligado à informalidade e ao risco de saúde. Há como transformar isso em uma função normal?
Este é o nosso projeto, a nossa ambição, transformar isso num negócio. Num negócio como outro qualquer. Porque tem vários trabalhos, tu pega um trabalho na área da saúde, tem coisa mais insalubre do que determinadas áreas da saúde? Só que claro, tem, por exemplo, os EPIs (Equipamento de proteção individual). A pessoa não trabalha se não tiver EPI. Têm reciclagens que nós conseguimos, com várias entidades, a infraestrutura. Mas não é só isso. Tem que ter a qualificação das pessoas, o investimento do dia a dia, da manutenção. O investimento para que o próprio negócio possa ter dinheiro para comprar os EPIs. Eles (os recicladores) são muito conscientes dos EPIs, só que é caro. Então, eles utilizam às vezes luvas usadas, o calçado não é o adequado. No fim de dezembro, fizemos um trabalho e entregamos EPIs. Mas as luvas duram uma semana, as botas um pouco mais. Esses trabalhadores deveriam estar com máscaras, com jaleco com um tecido forte, mangas compridas. Então, a gente tem o desejo de poder transformar isso em um negócio qualquer. Porque esse é o caminho para o meio ambiente, a gente precisa disso. E gera renda, é uma atividade que tem uma riqueza a ser explorada.
Falta de incentivos trava setor
Não é fácil atrair trabalhadores informais para o mercado regular. Com baixa capacitação, algumas associações ainda penam para conseguir uma renda justa pelo trabalho de triagem dos resíduos.
Ricardo Ferraz Pereira, presidente da Associação de Recicladores Novo Amanhã, no bairro Cidade Nova, conta que os 12 cooperados têm que dividir um rendimento médio de R$ 6 mil mensais, o que impede que possam investir na própria cooperativa.
— Seria bom se conseguíssemos comprar máscaras para trabalhar — almeja Pereira.
O valor, inferior a um salário mínimo, é insuficiente para rivalizar com o que alguns catadores ganham circulando pelas ruas. Um deles é Zelmar Correa, 21, que começou a recolher materiais recicláveis aos 14 anos, mas há quatro meses conseguiu um carrinho para auxiliar no trabalho.
— Eu precisava ganhar algo para ajudar a família. Hoje tá rendendo bem, ganho uns R$ 40 por cada carga — diz o morador do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, que consegue encher o carrinho até duas vezes por dia e vende o material com a ajuda do pai, que também participa da atividade.
Vincular-se a uma instituição também não está nos planos do casal Paulo José da Silva, 47, e Irene Aparecida Ranzan, 47. Os dois trabalham como catadores há pelo menos sete anos e realizaram o caminho contrário do esperado pelo poder público.
— Eu já fui presidente de uma associação (de reciclagem), mas saí por alguns problemas. Tem muita incomodação. Cada um quer o melhor material para si, ganhar mais que o outro, todo mundo reclama — aponta Silva.
— Uns trabalham demais, outros trabalham pouco, e daí no fim do mês todo mundo ganha a mesma coisa — argumenta Irene.
Trabalhando juntos, os dois ganham o suficiente para pagar as contas e o aluguel da casa onde moram, no bairro Santa Corona. Caso tivesse outra oportunidade, Silva não hesita:
— Eu não saí dessa vida porque ainda não arrumei emprego.
O desafio de integrar os catadores à Cadeia Produtiva da Reciclagem é reconhecido pelo vereador Gustavo Toigo (PDT), autor de projetos para garantir o financiamento ao setor.
— A gente sabe que é um setor importante, que precisaria de regulamentação mais efetiva. Pretendemos retomar isso em audiências públicas, esse assunto precisa avançar — defende.
O Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos prevê metas para a qualificação da Cadeia Produtiva da Reciclagem. Em 2017, o município deveria concluir o cadastramento das cooperativas e empresas de reciclagem e coibir a coleta não autorizada de resíduos recicláveis, “evitando-se que os resíduos com valor agregado sejam desviados da destinação às associações de triadores conveniadas com o município”, conforme o documento.
Não foi possível checar se as metas foram cumpridas. Desde o ano passado, o Comitê Municipal da Cadeia Produtiva da Reciclagem passou a ser coordenado por Ana Cristina de Brito, servidora da Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Emprego. Ela se afastou por licença médica e em seguida entrou de férias, não conseguindo atender a reportagem.
PLANO MUNICIPAL
:: Como forma de garantir a renda dos recicladores, o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Caxias do Sul, aprovado em dezembro de 2016, prevê em um de seus eixos o fortalecimento da Cadeia Produtiva da Reciclagem (CPR), composta pelas associações conveniadas com o município.
:: Entre as diretrizes, a legislação busca direcionar os catadores informais às entidades, já que a atuação deles apresenta desvantagens: os trabalhadores estão sujeitos a atravessadores que compram o material por preço mais baixo e dificultam o monitoramento da atividade para de políticas públicas.