Sob a justificativa de estar cumprindo a lei e com o receio de enfrentar processos semelhantes ao da família Magnabosco, que cobra indenização de mais de R$ 300 milhões pela ocupação da área privada onde é hoje o bairro Primeiro de Maio, a prefeitura de Caxias do Sul deixou de realizar obras em 260 loteamentos irregulares.
O município alega não ter como patrolar as ruas para facilitar o fluxo de carros e ônibus ou intervir em áreas de convivência, por exemplo. As obras também deixaram de ser realizadas em bairros regulares, mas que abriram vias sem autorização do Executivo. A medida foi adotada pela gestão de Daniel Guerra (PRB) e causa descontentamento em parte da comunidade. Os moradores questionam a motivação a mudança e, muitas vezes, precisam recorrer ao Poder Judiciário ou ao próprio bolso para ter acesso a serviços básicos. As obras suspensas incluem patrolamento, cascalhamento, manutenção ou construção de redes de esgoto e de drenagem ou consertos de calçadas. O resultado são máquinas e operários da prefeitura ociosos na cidade e que acabam sendo redirecionados para trabalhar no interior.
– Metade dos casos tem embargos administrativos, que há falta de papelada e documentação no município, e a outra metade tem processo judicial correndo. O que acontece que até a gestão passada, era feita a manutenção destas áreas irregulares, o que é contra lei. Agora a gente não pode mais atuar nestas áreas com embargos – afirma o secretário municipal de Obras e Serviços Públicos, Leandro Pavan.
O que é mais recorrente, detalha Pavan, são moradores que compram imóveis do loteador com “contratos de gaveta”, ou seja, um acordo onde o comprador assume dívida do financiamento imobiliário, e a propriedade só passa para o seu nome após a quitação. Muitas vezes, o loteador some após o pagamento e o imóvel fica sem a infraestrutura prometida. Para que o bairro não fique no completo abandono enquanto os entraves se resolvem, uma das saídas encontradas por grupos de moradores mais articulados é buscar o Ministério Público (MP) e pedir judicialmente a intervenção do município. Ao comprovar que o bairro já ingressou com processo de regularização na secretaria de Urbanismo, o MP costuma conceder autorização para o município executar aquele reparo.
Temor de processos
No passado, o município usou recursos para fazer melhorias em diversas comunidades irregulares, entre elas, o Primeiro de Maio. A área serviria para abrigar as futuras instalações da Universidade de Caxias do Sul (UCS), mas foi invadida por famílias no final dos anos 1970. Ao longo do tempo, a invasão ganhou melhorias da prefeitura, intervenção que foi usada como argumento pela família Magnabosco, dona do terreno, para pedir uma indenização. O entendimento é de que o Executivo colaborou para consolidar a antiga invasão.
– É importante esta ação da prefeitura até para evitar um futuro processo, como aconteceu no caso Magnabosco. Ações civis públicas foram mais comuns neste inverno, pedindo manutenção das ruas – avalia o promotor Ádrio Gelatti, responsável pelo encaminhamento dos pedidos judiciais para melhorias nos loteamentos.
O bairro Vergueiros é uma das comunidades que conseguiu autorização, via MP, para reparos na Rua dos Cristais, que estava intransitável após quase um ano sem manutenção. A presidente do Vergueiros, Tania Menezes, diz que enquanto encaminha a papelada para obter a regularização, a prefeitura está autorizada a executar reparos.
– Por mais que seja uma situação não legalizada, tem gente que vive ali. Gente que paga IPTU, que usa a UBS, que vai à escola, que é cidadão. Os moradores não merecem ser punidos por isso – ressalta Tania.
Moradores relutam em regularizar
Apenas 70 entre os 260 loteamentos identificados pelo município estão com algum processo de regularização na secretaria de Urbanismo. A titular da pasta Mirangela Rossi diz que 50 processos encontram-se em fase adiantada. Representantes de outros 190 loteamentos sequer procuraram a prefeitura para dar entrada na documentação. Mas a intenção da secretaria em concluir parte dos processos ainda neste ano não deve ser alcançada, acredita a secretária, devido ao número de processos e a quantidade de irregularidades encontradas neste caminho.
– Tudo está mais demorado e complexo. Há processos que levam de cinco a 10 anos, há processos que andam e param. Nós montamos uma equipe técnica, que já estava sendo formada no fim da administração anterior, e avançamos bastante. Até mesmo percebemos os moradores bastante envolvidos, procurando profissionais técnicos para ajudá-los– elogia a secretária.
Nos casos em que o loteador ainda mantém contato com os moradores, o correto é que seja arrolado no processo e reúna a documentação necessária. Em situações em que não é possível encontrar mais o loteador, é necessário que a comunidade escolha um representante para liderar o processo, junte os contratos de compra e contrate um responsável técnico para levantamento da área. Toda a regularização deve ser feita via secretaria do Urbanismo. Informações podem ser obtidas pelo telefone (54) 3218-6130.
A União de Associações de Bairro (UAB) contesta a prefeitura e afirma que não há tantos loteamentos irregulares. A entidade diz que seriam entre 50 e 60 comunidades sem regularização. Por esse motivo, a UAB está se colocando à disposição dos líderes comunitários para ajudar nas reivindicações.
Famílias pagaram o patrolamento de rua
Não há sequer uma rua pavimentada no loteamento Parque dos Pinhais, com acesso pela BR-116, próximo ao bairro Parada Cristal. As 150 famílias que moram ali dizem ter comprado os terrenos de três loteadores, que não se preocuparam em entregar o espaço com a infraestrutura adequada. Conviver com o pó ou o barro seria menos incômodo caso as ruas estivessem em condições trafegáveis.
O resultado de quase um ano sem trabalho de máquinas da prefeitura são ônibus da Visate, escolares ou empresariais que não circulam pela maioria dos lugares, restringindo-se a fazer o transporte de passageiros somente pela via central. A equipe do Pioneiro, por exemplo, não conseguiu subir de carro até o fim da rua para entrevistar os moradores. E, ao descerem para a conversa, os moradores precisavam agarrar-se um ao outro para evitar uma queda no chão enlameado.
– Quando eu quero sair de casa, uso um atalho por dentro do mato. É mais seguro que esse barranco – lamenta a aposentada Cleusa Dias Chocho, 60 anos.
Ela é uma das moradoras que participou de uma vaquinha para pagar pela brita e por um serviço de uma patrola para tentar amenizar as condições de uma das ruas do loteamento. A comunidade se uniu e decidiu bancar o valor para permitir a passagem de carros e motos. Cada família arcou com R$ 50. A presidente da associação de moradores, Tânia Onzi, diz que a comunidade tem um assessor para encaminhar o processo de regularização na prefeitura, que está em fase adiantada.
– Enquanto isso, estamos no abandono, mesmo pagando IPTU. Não conseguimos nem andar de ônibus em função de um loteador que loteou de forma irregular– desabafa Tânia.