Imagine ruas de chão batido, com crianças brincando alegremente, e nada de congestionamento. Movimento maior, só aos domingos, quando fiéis do interior chegam para assistir à missa e amarram seus cavalos em frente a uma loja nas proximidades da Catedral. Não muito longe da praça, cabritas saem do pátio de uma casa e passeiam pela rua, até a ocasião em que são "detidas" pela polícia e precisam ser resgatadas ao preço de 5 mil réis e da promessa de que o portão será mantido fechado.
Pode não parecer, mas a descrição acima é do centro de Caxias do Sul. Num outro tempo, é verdade: a Caxias que hoje soa impossível era a realidade da menina Lourena Segalla e de seus irmãos lá pelos anos 1930, quando a família habitava na Rua Os 18 do Forte. As tais cabritas eram da mãe de Lourena, que também criava porcos e galinhas ali mesmo, no pátio de casa - chegou a ter uma vaca, mas o animal foi vendido depois de sair à rua e erguer com os chifres uma das crianças que brincavam (felizmente, foram apenas escoriações leves).
- A cidade era muito pequena, a gente conhecia todo mundo. As mães não precisavam levar os filhos para o colégio, e a porta da nossa casa ficava sempre aberta - recorda Lourena Segalla Seidl, hoje com 91 anos, 17ª filha de Luiz Segalla, imigrante que veio da Itália em 1875, aos cinco anos. - Era tudo muito simples, não tinha conforto, mas valorizávamos tudo, tínhamos alegria de viver, cantávamos muito.
Há décadas morando num prédio na esquina das ruas Marquês do Herval e Sinimbu, a pouco mais de uma quadra de onde nasceu em 1924, dona Lourena testemunhou o crescimento da cidade. Na meninice, divertiu-se nas primeiras edições da Festa da Uva, muitas delas realizadas na Praça Dante Alighieri, onde, para deleite da gurizada, havia até roda gigante. A praça, aliás, era um tanto quanto diferente do que é hoje, em dois níveis, com uma parte alta e outra baixa, e não havia chafariz.
Já mocinha, Lourena ajudou a vender medalhinhas nas festas da igreja, participou dos jogos de tômbola (bingo), que todos os anos tinha como primeiro prêmio um fogão oferecido pela Ferragem Caxiense, viu o primeiro calçamento surgir em frente ao Cinema Central ("foi a glória, a cidade desabrochando") e presenciou a troca dos cavalos pelos então modernos Ford Bigode. O lazer incluía idas ao cinema - havia três opções ali pertinho, o Guarani, o Central e o Ópera -, os bailes de Carnaval no Juventude e, aos domingos depois da missa, o flerte com os rapazes que, sempre de terno ("se não usassem terno, nem olhávamos"), enfileiravam-se na praça para trocarem olhares com as moças.
O "footing", como os jovens chamavam esse momento em que as meninas andavam para lá e para cá olhando possíveis pretendentes, não era a única atividade tradicional após a reza. Na Sinimbu, recorda dona Lourena, havia um bar onde quase todo mundo ia tomar café depois da missa - afinal, naqueles tempos todos guardavam jejum antes de comungar. E não era um café da manhã qualquer: começava com tripada.
Lojas, havia poucas, basicamente a Casa Pezzi e a Casa Minghelli, que vendiam tecidos. Também havia um representante da Renner, que ia na casa dos clientes levando um mostruário, tirava as medidas e mandava fazer ternos em Porto Alegre para os homens e meninos. Roupas prontas, entretanto, não havia à venda: até a lingerie, como os "corpinhos" de então, precisava ser confeccionada em costureiras. Nos finais de ano, uma conhecida, dona Mora, ia para São Paulo e trazia as novidades, como as sedas para vestidos.
Em termos de emprego, a maior referência próximo a meados do século 20 em Caxias era a fábrica do Eberle:
- Em toda família, tinha alguém trabalhando lá. Quando os filhos cresciam, já iam ver se tinha vaga - conta Lourena, que também estava na lista, mas foi chamada antes para trabalhar na Farmácia Confiança, onde ficou três anos, até casar, em 1945.
Nos anos 1940, durante a 2ª Guerra Mundial, rádios eram raros, por isso todos acorriam quando soava a sirene do Cine Central: era sinal de que chegara um telegrama com notícias do front, que todos queriam saber. Dona Lourena salienta que, apesar de muitos dizerem que a guerra não afetou muito por aqui, havia falta de alguns víveres. Quando de seu casamento, o sal precisava ser moído manualmente, por exemplo. Aliás, uma coincidência é que, depois de casar, ela foi viver em Gramado, então uma pequena vila, mas acabou voltando a Caxias do Sul dois meses depois - justamente no dia 8 de maio de 1945.
- Quando chegamos, havia foguetes estourando. Era porque a guerra havia acabado.
A arquitetura urbana também era outra. Em vez dos prédios altos, apenas casas, poucas delas de alvenaria. Seu pai, construtor, fez uma fachada de alvenaria para a casa da família, com sacada, e o resto era de madeira. Já havia luz elétrica, mas não em toda a residência: o quarto dos meninos ficava às escuras, bem como a escada para o segundo piso, na qual era preciso subir tateando. O pai fez ainda serviços de acabamento, piso e reboco na Catedral (recebendo pelo serviço seis contos de réis, pagos com duas latas de querosene cheias de moedas), além de construir diversas moradias. Aqui, ela lamenta:
- A maioria das casas bonitas que meu pai construiu não existe mais.
Alguns anos atrás, dona Lourena colocou algumas dessas histórias (e muitas outras mais) no papel, para que os oito netos tomassem contato com a Caxias de antigamente. Um dos filhos mandou imprimi-las em livro, distribuído a familiares e amigos. O título não poderia ser outro: Histórias da Rua das Cabritas...
125 anos de emancipação
Dona Lourena viu Caxias do Sul crescer
Com 91 anos, moradora do Centro recorda uma cidade ainda tranquila e sem ruas calçadas
Maristela Scheuer Deves
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