Há poucos dias tive o privilégio de participar de uma reportagem escrita a 14 mãos sobre os 50 anos do Lar da Velhice São Francisco de Assis.
A matéria coletiva saiu boa, a homenagem foi satisfatória. O Lar merece muito mais, ninguém duvida, mas.
Mas minha rápida passagem pelo Lar da Velhice proporcionou-me uma cena que grudou na retina, não consigo esquecê-la, volta e meia uma espécie de filmete muito curto surge espontaneamente e me leva de volta ao Lar, àquele átimo de tempo que flagrei de relance, sem querer ver mas vendo.
A cena:
Um interno está sentado numa poltrona, parece estar sentado naquela poltrona desde sempre, os dois se completam. Ele recebe uma boneca de uma atendente. A boneca é entregue com carinho, levada ao colo quente. O idoso recebe-a com cuidados de pai, de mãe, acomoda-a nos braços sem emitir um ai, embala-a, talvez cantarole mentalmente uma melodia de ninar.
A boneca é velha, surrada, semi careca, feiosa. Mas é o bebê do idoso, está claríssimo que é o bebê dele que chegou à hora marcada, sem falhar, para amenizar carências. A boneca deve ser há tempos a companhia do idoso, criança de plástico que não evolui enquanto ele se desintegra em respeito às infalíveis regras naturais.
Ainda não consegui elaborar cena suficientemente para entendê-la, quiçá explicá-la.
Provavelmente eu atravesse toda a existência que me resta sem entendê-la.
Não sei se a cena é alegre, se é triste, se é deprimente, se é depressiva, se.
A cena é chocante, linda e trágica.
Aqui do meu posto ainda tão pouco avançado tendo a concluir que o velho é feliz, que seu bebê de plástico é feliz, que tudo poderia ser menos feliz sem a visita da boneca.
Daqui imagino que a boneca não falha, é pontual, presente, mais gente do que muita gente.
Daqui também imagino (equivocadamente, quero crer) que o idoso não tem parentes, que o idoso não quer visitas de carne e osso, que o idoso foi abandonado.
Imaginar assim é imaginar de ré.
Melhor crer que o velho e a boneca são inseparáveis porque neste ponto da vida eles se bastam ou é preferível ensaiar um tratado sobre as condições impingidas aos velhos?
Melhor não concluir, melhor seguir revendo a cena roubada desfilar para meus fantasmas sem pedir licença.
Opinião
Gilberto Blume: um idoso na poltrona, uma boneca. O filmete insiste em se exibir
Daqui imagino que a boneca não falha, é pontual, presente, mais gente do que muita gente
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