Referência no ensino de Medicina no país, a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) vivencia um fenômeno provocado pelo novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Como estudantes de todo o país podem disputar uma vaga na instituição gaúcha usando a nota na avaliação, cresceu a proporção de alunos provenientes de outros Estados.
O primeiro dia de aula na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), ontem, revelou um fenômeno provocado pela nova forma de acesso ao Ensino Superior brasileiro: uma invasão de estudantes com diferentes sotaques. Conforme estimativa da reitoria, a substituição do tradicional concurso vestibular pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU) deverá, no mínimo, dobrar a proporção de alunos de fora do Estado na instituição. A expectativa ilustra o impulso que a novidade deverá dar à migração estudantil no país.
Como as últimas matrículas ainda estão sendo efetuadas e a universidade não revisou o perfil dos alunos já registrados, os dados oficiais deverão ser conhecidos apenas a partir de amanhã. A reitora Miriam da Costa Oliveira estima, porém, que mais de um terço dos novos aprovados vem de outras regiões do país - nos últimos dois anos, esse percentual havia ficado pouco acima de 10%. Um dos maiores saltos deverá ocorrer no curso de Medicina, segundo indicam as informações preliminares.
Isso ocorre porque, enquanto até o ano passado o candidato arcava com os custos de uma viagem até a universidade desejada para concorrer no vestibular, o SiSU permite que ele lance sua nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) na internet e concorra a uma vaga à distância e de forma gratuita. Assim, se contar com média suficiente, pode optar por qualquer uma das 51 instituições públicas que aderiram ao novo sistema.
No Rio Grande do Sul, dois institutos e três universidades (de Pelotas, do Pampa e UFCSPA) abriram vagas ao SiSU. A UFCSPA distribuiu 368 vagas em oito curso pelo sistema. O estabelecimento porto-alegrense se destaca por ter se firmado nos últimos anos como a segunda melhor instituição de Ensino Superior do país com base nas avaliações do Ministério da Educação. O resultado é uma corrida de alunos de regiões tão distantes como São Paulo, Bahia ou Goiás por um lugar na universidade gaúcha.
- Esperamos selecionar ainda mais os melhores candidatos. O nosso ponto de corte na Medicina (nota mínima para a vaga), por exemplo, foi de 818 na primeira etapa, em um máximo de 900 pontos. Ficou entre as duas mais altas do país - observa a reitora.
Novo perfil vai exigir adaptação
Um passeio pelos corredores da UFCSPA ontem à tarde permitia vislumbrar o impacto que o novo método de acesso à universidade deverá provocar. Em um canto do saguão no andar térreo, um grupo de quase uma dezena de calouros do curso de Medicina conversava durante o intervalo do primeiro dia de aulas. Perguntados se entre eles havia alguém de fora do Rio Grande do Sul, um deles respondeu:
- Aqui é todo mundo de fora...
Como resultado, a reitoria deverá fazer um estudo nos próximos dias para verificar que adaptações precisarão ser feitas no sistema de assistência estudantil para atender ao novo perfil do alunado. O Ministério da Educação, prevendo o progressivo aumento na migração em busca de vaga, ampliou o recurso destinado a projetos de apoio de R$ 126 milhões no ano passado para R$ 300 milhões esse ano.
Conforme a assessoria de imprensa do MEC, até o ano passado o percentual de universitários que estudavam fora de seu Estado de origem era ínfimo - abaixo de 1%. A partir de agora, a intenção do governo é multiplicar esse patamar. Dados mais precisos, porém, somente serão informados após o fim do período de matrículas e de feita a contabilidade do SiSU.
Enquanto isso, os pioneiros da nova forma de seleção se adaptam como podem à vida longe dos pais e amigos. As estudantes de Medicina Cristina Jatobá, Ana Paula Bastos e Eloísa Bartmeyer (à esquerda), por exemplo, encontraram abrigo em um mesmo pensionato da Capital.
- Quando viemos para cá, já achávamos que teria bastante gente de outros Estados. Mas não tanto - confessa Eloísa.
Alguns migrantes, como o também estudante de Medicina Hugo Octaviano, chegam com planos de não deixar mais o Estado.
Uma avaliação sobre o novo sistema
Confira, com base em avaliações de quem defende ou critica o novo sistema de seleção de universitários, possíveis impactos da medida:
As vantagens
Seleção mais qualificada
- Ao ampliar o universo de candidatos, o sistema informatizado tende a aumentar o nível de qualidade dos escolhidos. Isso poderia contribuir para melhorar o aproveitamento dos cursos, o nível de pesquisa realizada pela instituição e a formar profissionais com maior capacidade.
Democratização do acesso
- Ao reduzir as barreiras geográficas, já que o candidato não precisa mais pagar uma inscrição ou viajar para prestar o concurso vestibular, o novo modelo de acesso favorece a democratização do Ensino Superior no Brasil. Um sistema semelhante é utilizado nos EUA.
Variedade cultural
- A tendência é de que as universidades mais concorridas se tornem polos multiculturais, reunindo estudantes dos mais diversos cantos do país. A troca de experiências e o contato com culturas variadas pode ser um ponto a favor na formação geral dos novos universitários.
As desvantagens
Desníveis regionais
- Parte dos estudantes se queixa de que eventuais desequilíbrios regionais na qualidade do Ensino Fundamental e Médio oferecido ficarão mais explícitas ao concorrer diretamente com alunos de outras partes do país onde a Educação Básica pode eventualmente ser mais forte.
Condição econômica
- Embora alunos de qualquer parte do país concorram em condições de igualdade a uma vaga na universidade, quem não tem condições de bancar uma viagem para outro Estado ou condições de se sustentar longe de casa pode ser forçado a desistir da matrícula.
Destino profissional
- Como um número crescente de formandos deverá vir de outros Estados, estes profissionais poderão retornar para seus Estados de origem depois de concluído o curso. Como resultado, poderia ser reduzido o impacto regional das universidades no fornecimento de profissionais qualificados.
Cursinhos falam em invasão
A ampliação da presença de estudantes de outros Estados na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) desagradou aos diretores dos principais cursinhos pré-vestibular do Rio Grande do Sul. Eles consideram que o fenômeno contraria a política defendida pelo próprio Ministério da Educação de ampliar o acesso à universidade.
Isso porque, ao permitir que alunos de São Paulo e Rio de Janeiro concorram em pé de igualdade com candidatos gaúchos, o Enem não levaria em conta as diferenças regionais, o que agravaria ainda mais desigualdades sociais, na visão dos diretores dos cursos preparatórios.
- Alunos oriundos de cidades economicamente menos favorecidas terão menos chances de passar no Enem. Se o Enem fosse adotado por todas as universidades federais, poderíamos no futuro ver o país dividido por profissão. Só os paulistas seriam médicos, os gaúchos ficariam com a Engenharia e o que sobraria para os nordestinos? - questiona Paulo Renato Mottola, diretor do Mottola Pré-Vestibular, de Porto Alegre.
Alunos de outros Estados poderiam ampliar evasão
Mottola diz ter ficado preocupado com o desempenho dos alunos na prova do MEC. Mesmo aqueles que obtiveram uma nota excepcional ficaram abaixo do ponto de corte para ingresso na Medicina da UFCSPA e não conquistaram uma vaga.
Além disso, ressalta, a proporção de alunos bem preparados de São Paulo, por exemplo, é bem maior que a do Rio Grande do Sul. Haveria, portanto, uma distorção quantitativa na disputa, que acaba resultando no maior número de estudantes de fora do Estado em universidades gaúchas.
- Estamos entregando uma de nossas melhores universidades, feita pelos gaúchos, para o resto do Brasil. E por que razão? Para a UFCSPA se eximir de fazer um vestibular - critica o professor de Física Ênio Kaufmann, diretor do Unificado.
Na avaliação do professor Gilberto Kaplan, diretor do Universitário, a migração de estudantes de outros Estados pode, no futuro, aumentar a evasão. Ele ainda aponta outros problemas:
- A prova em si não é adequada. Não aborda temas locais, deixa a desejar em termos de conteúdo e é muito, muito extensa. Talvez estejam aí os motivos pelos quais nenhuma universidade séria aderiu completamente ao Enem.
Geral
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