"Acabaram-se os bondes amarelos... frase me saiu em decassílabo, viste? E o metro clássico já faz adivinhar um soneto. Ficou neste verso único. E deixo o bonde depositado em meu ferro-velho sentimental. Aqui. Parado. Sonhando. Quem sabe se um dia..."
Um dia o poeta Mario Quintana escreveu os versos que profetizavam o futuro. Ainda não há uma data, mas o projeto Bonde Histórico está nos trilhos e percorre um cronograma com marcos importantes previstos para este ano.
Passados 40 anos do dia 8 de março de 1970, quando os freios pararam as últimas rodas do último bonde em Porto Alegre, o retorno está delineado e abrange um plano maior de recuperação do centro da Capital. O antigo veículo elétrico, agora com as vestimentas de um plano turístico, é tratado na prefeitura como âncora do projeto Corredor Cultural, um dos tantos que fazem parte do programa Viva o Centro, área pela qual circulam mais de 400 mil pessoas por dia.
No caso do Corredor Cultural, base do trajeto do novo bonde, é preciso mudar a cara das ruas e dos prédios. O que já foi bom ou é bom agora precisa ser realçado, ganhar consistência para atrair as pessoas. E tem muita coisa interessante. Só para citar três exemplos: a Casa de Cultura Mario Quintana, o Margs e o Memorial do Rio Grande do Sul. Alguém imagina quantos minutos ou horas dá para gastar nestes lugares sem sentir o tempo passar? Criar um ambiente agradável é imprescindível, e para se ter uma rápida ideia do que isso significa, a Rua Sete de Setembro, que já foi de cinema e de bancos, deverá ser bem redesenhada. A calçada será alargada para receber bares e restaurantes, e os proprietários de prédios serão estimulados a tornar as fachadas atraentes.
Faltam muitas respostas para o projeto, inclusive as técnicas. Como os porto-alegrenses do novo século reagirão ao bonde é uma das dúvidas. Convidamos os escritores Moacyr Scliar e Luis Fernando Veríssimo para um exercício de imaginação sobre este velho futuro que se aproxima. Os dois apostam em soluções tecnológicas para problemas como o ruído excessivo, e um Verissimo mordaz comenta a chance de se repetir hoje alguma cena glamourosa de tantas décadas atrás: "Glamourosa eu não sei, mas como Porto Alegre ainda tem muita carroça imagino que um acidente com um bonde e uma carroça será uma espécie de apoteose nostálgica".
Sem ironias, a realidade é que por trás da nova paisagem ficará escondido um trabalho exaustivo de pesquisa sobre o que precisa ser feito nos leitos das ruas para implantar os trilhos, os melhores lugares para as estações do bonde, sinalizações especiais e sobre como será a convivência com automóveis e ônibus pelas ruas do percurso previsto. Na semana em que Porto Alegre comemora seus 238 anos, graças à verba de um convênio com a União, o projeto já está sendo tocado. Se o bonde andar mesmo, daqui a algum tempo poderemos descobrir se Scliar tinha razão neste comentário:
- Muitos romances devem ter nascido em bondes, e nada impede que isso aconteça de novo...
Sessão nostalgia
Moacyr Scliar
No Brasil é impossível falar sobre bondes sem voltar ao passado. Em alguns lugares ( o bairro de Santa Teresa, no Rio), ainda estão presentes, mas, de maneira geral, as cidades brasileiras baniram-nos, em nome do progresso. Com alguma razão: os primeiros bondes eram vagarosos veículos de tração animal; mesmo quando passaram a ser movidos a eletricidade sua velocidade não aumentou muito. A propósito da inauguração dos bonds (como se dizia à época) em Santa Teresa, escreveu, em 1877, o cronista Machado de Assis: Inauguraram-se os bonds. Agora é que Santa Teresa vai ficar à moda. O que havia pior, enfadonho a mais não ser, eram as viagens de diligência, nome irônico de todos os veículos desse gênero. A diligência é um meio-termo entre a tartaruga e o boi. Esta definição, com o tempo, passou a ser aplicada aos próprios bondes, e quando Porto Alegre erradicou-os, ninguém lamentou muito; os bancos viraram suvenir, e Erico Verissimo foi fotografado em sua casa sentado num deles. Mas os bondes fazem falta. Porque, constatou-se mais tarde, não eram só meios de transporte; eram lugares de convivência, caracterizando inclusive comunidades: a turma do bonde Duque, a turma do Gasômetro, do J.Abbott... Um lugar em que se podia encontrar amigos e conversar animadamente: os bondes eram mais amplos do que os atuais ônibus. Quanto à lentidão, bem, o tráfego ficou lento em geral.
Pergunta: pode voltar o bonde? Pode, como um equivalente ao metrô de superfície. E não será muito diferente: basta olhar os modernos bondes em cidades europeias e americanas para constatar que o modelo permanece. Bonde é como o livro: sobrevive ao tempo. É a nostalgia sobre trilhos.
Glória ou Independência
Luis Fernando Verissimo
Os bondes da minha memória tinham bancos reversíveis de madeira. Reversíveis porque o condutor (também chamado de cobrador, e que fazia dupla com o motorneiro) trocava os encostos de lado de acordo com a direção em que iria o bonde.
Entrava-se pela frente ou por trás, por uma espécie de vestíbulo que era também a cabine do motorneiro. Alguns (raros) bondes da minha época tinham portas que fechavam quando o bonde andava. Alguns eram menores, chamados "gaiola", e saracoteavam mais do que os grandes. Mas com os grandes também era comum o cabo desengatar do fio e o condutor ter que descer para reengatá-lo, entre gemidos de impaciência dos passageiros.
O freio dos bondes fazia "prfff" (mais ou menos) e o truque para fugir da multidão que esperava o bonde no abrigo da Praça XV era pegá-lo antes que ele fizesse a volta, na frente da Casa Carvalho, a do "v" providencial.
Geral
Quarenta anos depois, bondes voltarão a circular como atração turística no centro de Porto Alegre
Veículos amarelos são o ponto principal do projeto Corredor Cultural, integrante do programa Viva o Centro
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