Trabalhar debaixo de qualquer tempo. Quem vive da terra ouve e repete uma frase que é tratada quase como lema entre os agricultores. E valorizado por uma sociedade que depende da categoria para ter comida na mesa. Faz parte da rotina. Acordar, trabalhar, resistir. E a chuva que atingiu todo o Rio Grande do Sul, deixando grandes estragos também na Serra, desafia ainda mais os produtores de hortifrutigranjeiros, de inúmeros municípios e culturas.
Em meio a um cenário de incertezas de como a região vai recuperar-se e os caminhos para diminuir prejuízos, entidades ligadas ao segmento têm acompanhado a situação, e oferecido os primeiros auxílios. Com dificuldade de acessar algumas comunidades que sofreram com deslizamentos de encostas e permanecem com estradas bloqueadas, o levantamento de tudo que se perdeu está comprometido.
O gerente regional da Emater, Gilberto Bonatto, confirma que as cidades mais atingidas, além de Caxias do Sul, foram Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Santa Tereza, Veranópolis, Cotiporã e São Valentim do Sul, entre outras. Entre as plantações afetadas estão principalmente as que abastecem os mercados de frutas, legumes e hortaliças.
— Hoje, a Serra corresponde a 80% dos produtos da Ceasa em Caxias, e 30% do abastecimento na estrutura em Porto Alegre. Perdemos muito nas culturas de tomate, cenoura, beterraba, abóbora, principalmente as folhosas. Inclusive estufas, com muitas destruídas — elenca o gerente da Emater.
Além das perdas na horticultura, a parte estrutural também preocupa, e é onde a entidade concentra as atividades no momento. Bonatto confirma que as ações de recomposição das áreas é a prioridade, assim como trabalhar o aspecto anímico dos agricultores, que chegam a cogitar deixar o cultivo.
— Nós estamos fazendo o que é possível junto às propriedades, atendendo aqueles que vêm nos procurar, dando um apoio psicológico também. Precisamos conversar bastante e achar caminhos juntos. Muitos estão pensando até em desistir da atividade. Alguns pensam em morar na cidade, ir trabalhar na área rural e voltar. Para evitar isso, num primeiro momento estamos fazendo um levantamento do que aconteceu em toda a região, e auxiliar as prefeituras, para depois, com calma, entender toda a situação, ver como ajudar mais, inclusive auxiliar o governo a criar outras políticas públicas — afirma.
Recuperação baseada na força
Outra entidade que convive diariamente com o panorama da agricultura local é o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caxias do Sul. A presidente Benardete Boniatti Onsi, que precisou deixar a propriedade da família na comunidade de Forqueta, atingida por deslizamentos de terra, aponta a necessidade de amparar os agricultores, que se sentem perdidos em meio às incertezas.
— Oferecemos todo o acompanhamento possível, temos feito visitas no interior, com os associados, alguns estão com dificuldades até de vender a produção que restava, e sofrem com acessos precários. É um suporte moral, de comunicação, até de transporte em determinados locais. Vimos muitas parreiras caídas, safra comprometida, açudes que estouraram. A perda foi muito grande — ressalta Benardete.
A presidente do sindicato, contudo, aposta no poder de recuperação da categoria. Ao pregar calma e resiliência, ressalta sua confiança com a experiência e o conhecimento de quem vive a produção, além do espírito de união que caracteriza a região.
— Vamos com união, procurar trabalhar juntos, buscar alternativas, fazer reuniões de esclarecimentos. O agricultor vai esperar acalmar as coisas e depois resolver e continuar, porque é o trabalho dele. Sabe produzir, sabe que a cidade precisa do alimento e quer produzir — projeta.
Preocupação com a infraestrutura
A avaliação do poder público vem ao encontro do que as entidades encontram junto às famílias. O secretário da Agricultura de Caxias, Valmir Susin, afirma que a prefeitura tem trabalhado para amenizar os prejuízos, oferecendo a estrutura disponível para as comunidades do interior que mais enfrentam dificuldades.
A pasta também trata como prioridade as melhorias dos acessos e o levantamento de todos os estragos, tanto nas lavouras, quanto nas estruturas das propriedades. As estradas particulares, conforme o secretário, podem entrar no escopo de atuação.
— É uma coisa que nunca aconteceu. Mas não podemos ser pessimistas, temos que ser otimistas. Nós estamos conversando com a Procuradoria do Município para ver se podemos interferir e ajudar dentro da propriedade. Estamos conversando para ver se encontramos um caminho — afirma.
Susin ainda lembra de anúncios feitos pelo governo federal que impactam os agricultores. Entre eles está a prorrogação do prazo para pagamento de tributos, incluindo parcelamentos, medida estendida para todos os municípios atingidos pela chuva no Rio Grande do Sul. Com as ações apresentadas, impostos federais com vencimento em abril, maio e junho de 2024 poderão ser pagos a partir dos meses de julho, agosto e setembro deste ano, respectivamente.
O exemplo de garra da família Webber
Aos 81 anos, a vontade de continuar do produtor Normélio Webber é maior do que todas as dificuldades. Na comunidade de Sebastopol, no interior de Caxias, ele e a esposa Vilma (71) plantam aipim, repolho e tomate, e somam-se às famílias que precisarão de muita força para seguir em frente. Juntos, já se recuperaram de prejuízos causados por granizo, geada e deslizamentos. E pretendem repetir a garra neste nova catástrofe.
Com cerca de um hectare perdido para a chuva no episódio mais recente, entre produtos e material de sustentação do cultivo, seu Webber afirma que desistir não é opção, e o que perderam logo estará plantado novamente. Em seu espaço na Ceasa Serra, onde leva sua colheita semanalmente, não abre espaço para o desânimo.
— Eu nasci naquela terra e ainda hoje estou lá, trabalhando. Era do pai e tudo. O que aconteceu faz parte. A natureza, né? Não temos nada o que fazer. Eu vou continuar, não perdi a esperança. Vou arrumar, vou limpar, colher meu milho e seguir — diz Webber.
Sobre as dificuldades, o caxiense aponta o caminho para outros produtores que passam pela mesma situação. E contando com a família:
— Ali sou eu e a minha esposa. Vamos nos ajudando. Vamos abrir aquela estrada de novo e ir em frente. O jeito é continuar.
“A recuperação está naquilo que se sabe fazer”
Morador da comunidade de São Paulo da 4ª Légua, Flávio Canuto ajuda a abastecer a Ceasa Serra com brócolis e couve-flor. Toda a produção vem de cinco plantações espalhadas por dois municípios da região, Cambará do Sul e São Francisco de Paula. São cerca de 100 mil pés das verduras entregues toda semana em Caxias do Sul.
Sem contabilizar totalmente o tamanho do estrago causado pela chuva nas localidades de onde vêm os produtos, acredita que em alguns locais o prejuízo pode chegar a 50% do plantio. O foco, agora, está na retomada.
— Leva um tempo até conseguir entrar nas lavouras para o preparo de solo. Isso acarreta um intervalo de 60, 90 dias para começar a produção de novo. Mais da metade se perdeu, com certeza — avalia.
Canuto confia na persistência do agricultor e na maneira corajosa com que lida com o trabalho para que o momento seja superado. E incentiva a permanência no setor como forma de reconstrução.
— Para trabalhar na lavoura, nós temos de ser muito corajosos. Os investimentos são enormes e muitas vezes acontece esse tipo de fator que acaba prejudicando. Mas temos de ter esperança e fé para recomeçar. Todo produtor se especializa mais dentro de alguma área, de determinada cultura. Eu aprendi quando era novo que é fazendo aquilo que sabe que consegue se reconstruir. Não é mudando de trabalho. A recuperação está naquilo que se sabe fazer — finaliza.