O quadro pendurado na parede, a troca da fechadura, a cadeira firme para sentar-se no trabalho. Até no suporte do celular na mesa ou para trocar o pneu que furou na estrada. E experimenta arranjar uma lesão séria na coluna para ver quem será necessário. São tantas, e quase todas, as situações corriqueiras do dia a dia em que o parafuso está presente que já paramos de percebê-lo há muito tempo. Sabemos que está ali, mas acaba relegado à invisibilidade que a praticidade gera.
Um item que, embora seja pequeno nas atividades do cotidiano, representa muito para uma região com presença industrial tão marcante como a Serra gaúcha. O mercado dos parafusos, porcas, arruelas e demais similares de fixação ajuda a sustentar não somente inúmeras outras cadeias produtivas, mas também é o protagonista de uma economia que, mesmo sem parar de se diversificar, mantém algumas raízes bem firmes nos itens que a fizeram surgir e foram, ao longo do tempo, a fortalecendo, como todo o universo metalmecânico, de grande predomínio na região.
A curiosidade, contudo, é que a Serra não possui uma grande fabricante de parafuso, com as principais marcas do segmento local trabalhando fortemente com a distribuição e revenda, incrementando serviços especializados para clientes demandantes e criativos.
Alguns dos protagonistas desta história estão há bastante tempo no mercado e conhecem a fundo os cenários enfrentados no passado e o atual momento do segmento. Fundada em 1983 por Edson Balbinot, que até hoje exerce a função de diretor, a Fusopar testemunhou a evolução e a confirmação do parafuso como produto indispensável para as atividades do brasileiro, seja em casa ou na indústria.
Atualmente com 300 funcionários espalhados pelas 10 unidades Brasil afora, a empresa tem a matriz no bairro Santa Catarina, em Caxias do Sul, e trabalha com a distribuição do produto e personalização do atendimento para os clientes. O volume mensal gira em torno de 600 a 800 toneladas de fixadores, em um total de 75 mil itens cadastrados no estoque. Diretor e fundador da Fusopar, Edson Balbinot, aos 72 anos, muitos deles dedicados ao parafuso, avalia o pouco reconhecimento do item no mundo empresarial e, até mesmo, na correria do consumidor, apesar da grande importância do produto.
— O parafuso é um produto desvalorizado. Que não se dá muita importância. Só se dá importância na hora que falta. Aí o empresário, o industrial que está produzindo fala: “Não é possível parar minha produção por causa de um parafusinho”. E pode— exemplifica o empresário.
Entre os reposicionamentos de mercado ao longo dos anos, a empresa tornou-se também fabricante de fixadores, ramo em que atuou entre os anos de 2005 e 2015. A forte concorrência com outros polos, como o catarinense e o paulista, fez a Fusopar desistir da ideia, retornando às origens da distribuição.
E o que move Balbinot são as inúmeras possibilidades que o parafuso gera para a vida das pessoas. O entusiasmo está presente em uma linha de produção de elementos bem diversificada, capaz de atender todo tipo de demanda.
— Com o tempo, criaram-se parafusos específicos para cada função. Parafuso para o plástico, para a madeira, o telhado. Uma enormidade de itens diferentes que atendem as mais variadas necessidades. Nós também sugerimos coisas novas, pelo nosso setor de engenharia, levando o que o cliente procura aos fornecedores. Sugerimos aplicações, mudança e criação de elementos para que possam economizar, diminuir peso. Acompanhamos tudo — revela Balbinot.
E a praticidade de quem consome o parafuso está sempre no radar dos olhos atentos ao mercado. Segundo o empresário, o diálogo com os fornecedores reforça a importância de facilitar a vida de todos.
— Às vezes, se inventam peças muito diferentes. Aí a pessoa está no meio do mato, no interior, e não consegue encontrar a peça nova. Quanto mais normal, mais barato e mais facilita a vida do consumidor — avalia.
Parafuso também sustenta a inclusão
Em meio aos colegas e envolvido pelo trabalho, seu Gilson Sales, de 67 anos, empacota parafuso por parafuso de acordo com o pedido que pega para encaminhar. Cego, ele exerce a função na Fusopar há cerca de um ano, dentro do programa de inclusão que a empresa oferece. E o pedido por uma vaga veio do próprio funcionário.
—Depois de 30 anos no mercado de trabalho, ele se aposentou, e nos procurou para ter uma ocupação. Como trabalhamos com a inclusão, o Gilson se juntou à equipe. É muito gratificante tê-lo conosco aqui — afirma a coordenadora de Recursos Humanos, Silvana Siqueira.
A volta por cima
O futuro próximo do parafuso é promissor, seguindo uma tendência do setor em retomar uma maior utilização dos sistemas de fixação em substituição à solda, por exemplo. Essa é a avaliação do vice-presidente de Relações Institucionais do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região (Simecs), Ruben Antonio Bisi. Ele admite que o elemento passa despercebido, mesmo com a relevância que tem, também por decisões do mercado no passado.
— É item dentro da indústria que não tem tanta visibilidade, devido ao passado, quando foi substituído por rebite, solda ponto, o que diminuiu muito a quantidade de parafuso nas máquinas. Mas, agora, percebemos o caminho contrário. Há uma tendência de diminuir a quantidade de solda dos equipamentos por várias razões. Primeiro, pela dificuldade de conseguir profissionais da área. Segundo, por uma questão de saúde, já que há a geração dos fumos de soldagem (partículas extremamente finas geradas durante a soldagem), que preocupa o setor. Com isso, cresce a utilização de parafuso. Randon e Marcopolo são duas grandes indústrias que trabalham atualmente com programas fortes na retomada dos sistemas de fixação — aponta Bisi.
Quanto à ausência de fabricantes de maior porte na região, o diretor do Simecs acredita que os altos custos envolvidos fizeram com que empresários buscassem escolhas mais rentáveis ao longo dos últimos anos, deixando a produção de parafusos convencionais e focando na revenda e prestação de serviços.
— Pelo tipo de produto que fabricamos, a Serra é uma grande consumidora, e não temos um grande fabricante. Nós já tivemos essa indústria bastante forte, mas a escala para fabricar se modernizou muito, os equipamentos são muito caros, e isso acarretou na mudança do cenário — ressalta.
Mercado que permite adaptações
Quando começou as atividades, em 1970, a Metalúrgica Buzin talvez não imaginasse tudo o que o futuro traria para os planos de quem surgiu como fabricante de parafusos. Comandado desde a primeira peça pelo proprietário Jacir Buzin, falecido em 2011, o empreendimento, que começou pequeno, hoje ocupa um parque fabril de 4 mil m², no Distrito Industrial de Caxias do Sul, às margens da RS-453.
E a sequência do negócio familiar ficou por conta da filha e atual diretora, Cíntia Buzin, que intensificou os investimentos em modernização dos processos de produção que já havia iniciado na gestão do patriarca. O avanço da tecnologia e a busca por novos mercados, de acordo com Cíntia, permitiram agregar valor aos produtos e atingir clientes maiores.
— No início, ainda com o pai, trabalhávamos com elementos de fixação tradicionais. A indústria da cidade demandava fornecedores locais e ele viu essa oportunidade. Com a chegada dos tornos CNC, décadas depois, começamos a fornecer peças de fixação especiais, atendendo a um nicho de mercado de que desejávamos naquele momento. Entendíamos que os clientes tinham esse potencial, por isso decidimos sair um pouco dos itens tão conhecidos no mercado, o que segue até hoje — revela a diretora da Buzin.
Mesmo que os fixadores atualmente representem apenas 10% do faturamento da empresa, a atenção ao produto é total. Sem concorrer com as fabricantes e distribuidoras dos parafusos de linha, o foco está na criação de itens específicos para cada cliente, dentro dos segmentos que mais geram pedidos. Agrícola, rodoviário, automotivo, hidráulico e linha branca e moveleiro, segundo Cíntia, são os setores que sustentam a Buzin.
— Nosso parafuso é somente para necessidades diferentes, que o cliente não encontra no mercado, normalmente produzido sem larga escala. Um parafuso com cabeça especial, comprimento diferenciado, rosca diferente, por exemplo. Acompanhamos todo o ciclo de vida do produto, desde o desenvolvimento inicial, passando pela ascensão e declínio, e a reposição posterior, até sair do mercado — relata a diretora.
A rainha do parafuso virou diretora
Dos fatos engraçados da trajetória, Cíntia relembra da infância vivida em meio ao chão de fábrica, quando foi apelidada de Rainha do Parafuso por funcionários e pela própria família. O fato ocorreu quando a então menina de oito anos fez a primeira rosca em um parafuso, no meio da produção, utilizando uma laminadora.
— As peças eram feitas em um torno mecânico, e para usinar era muito demorado. Então, o pai comprou uma laminadora de rosca. O que era uma máquina muito moderna para o momento. Para ter uma ideia, a rosca levava um minuto para ficar pronta no torno, enquanto que na laminadora fazíamos em dois segundos. Eu fiz uma e saí falando: “agora vou ser a rainha do parafuso. E pegou — se diverte contando.
Customização que abastece a Serra
A credibilidade e representatividade de mercado alcançadas pelas empresas da região que atuam no ramo dos parafusos foram possíveis graças a um posicionamento muito além da revenda do produto. Serviços personalizados, garantia de estoque, estudo de projetos, aliados à competitividade no preço estão entre os fatores que fazem os clientes da região apostarem nas opções locais de atendimento e entrega.
Nesta direção, a Macrosul foi diversificando sua trajetória ao longo dos 50 anos de atuação na área. Localizada no bairro caxiense Desvio Rizzo, a empresa fornece toda linha de parafusos, com ênfase na prestação de serviços, para os setores automotivo, agrícola, da construção civil, eletroeletrônica, linha branca e indústrias em geral. E grande parte desses clientes está justamente na Serra.
Os 17 anos de casa e experiência no ramo dos fixadores dão ao gerente de vendas Gabriel Basso, 36, e ao supervisor de vendas Charles Torres, 48, o conhecimento fundamental para ajudarem a conduzir os processos internos e externos.
— Nós temos uma engenharia que dá suporte. Visita, desenha, customiza. Com isso, abrimos cotação com um parceiro e garantimos fornecimento e estoque. O cliente não precisa se preocupar com nada. É uma região que demanda itens especiais, por ter diversos segmentos e todos buscarem uma melhor performance no seu fixador, e garantir que recebam o que precisam é o nosso papel — aponta Basso.
Da movimentação anual de 3 a 5 mil toneladas de parafuso, cerca de 90% passam por algum tipo de customização, inclusive com patente de determinados produtos. A exclusividade de itens faz parte da disputa de mercado que a região também apresenta.
— É um ramo bem agressivo aqui na Serra. É o lugar que mais tem empresa do segmento por metro quadrado do Brasil, o que torna muito competitivo. E essa competitividade ajudou a fortalecer o setor — avalia o gerente de vendas.
Sobre a continuidade do parafuso e seu protagonismo na solução de problemas de quase todos os setores, Basso diz que não vê outro item que possa substitui-lo.
— Já foram testados alguns adesivos como fixador e nenhum deu certo. E nós acreditamos que o parafuso vai ficar por muitos anos ativo no mercado — finaliza.
Indústria moveleira: uma grande consumidora
Já que praticamente todos os segmentos fazem uso dos sistemas de fixação, não seria diferente com o setor moveleiro, um dos ramos mais fortes da região. Não há peça que saia da fábrica sem vários parafusos bem pensados e colocados em sua estrutura. Foi apostando nessa intensa presença do artefato que o empresário Geraldo Alexandrini deu início à caminhada da Bigfer, em Farroupilha, no ano de 1989.
De lá para cá, a estrutura ganhou outras unidades e cidades, o que proporciona a capacidade atual de produção própria de 800 toneladas/mês de parafusos e demais itens para kits para montagem de móveis. Tudo consumido na integralidade. Entre os mercados atendidos, a Serra desponta como o principal, alicerçada principalmente por clientes de Bento Gonçalves. Contudo, os negócios da Bigfer já atingem toda a América Latina, com as exportações representando cerca de 12% do faturamento.
— Nós fabricamos por necessidade de termos agilidade com o produto, porque no passado os fabricantes não queriam vender para nós. Começamos para fornecer a grandes empresas da região, e fomos aproveitando as oportunidades. O boom das camas tubulares, a fabricação de eletrodomésticos nacionais, que já foi muito mais forte — lembra Alexandrini.
Todo o conhecimento do setor faz o empresário não titubear quando questionado sobre qual é a maior dificuldade enfrentada no momento: a cada vez mais crescente presença de produtos importados com preços quase impossíveis de concorrer, principalmente oriundos da Ásia.
— Está entrando parafuso da China a preço de arame. Esse é o grande problema que enfrentamos. E o que vem da China é de qualidade baixa. Mas como o volume maior é de parafuso pequeno, que tem pouca exigência, a importância aumenta e a concorrência fica desleal — avalia.
Concorrência acirrada na ponta do setor
Na ponta da cadeia, onde o consumidor de varejo tem acesso aos produtos, por empresas ou para as necessidades da casa, muitos estabelecimentos também têm importante papel na região. Em Caxias do Sul, no bairro São José, um deles é a Macropar, que trabalha com a venda de parafusos e demais fixadores há 32 anos. Ao lado do irmão Ricardo, 36, Rafael Varela, 29, toca a empresa que tem no profissional de serviços gerais a sua maior clientela. De acordo com o proprietário, 60% dos atendimentos são para esse público, que executam trabalhos de manutenção, elétricos e hidráulicos, entre outros.
— Nós ganhamos na agilidade. Em revendedoras maiores, nem sempre o cliente consegue o que procura. Aqui, ele chega e pega. Ou encomenda e passa para buscar. Tanto que grande parte compra todo mês, vira assíduo. Outras importantes fatias são a indústria e a construção civil, para quem vendemos bastante também — comenta Varela.
Sobreviver no mercado e driblar a concorrência é o que desafia a Macropar, admite Varela. Embora a Serra seja uma região com grande potencial de consumo, o número de estabelecimentos voltados ao parafuso acirra a disputa nas vendas.
— O principal desafio é lidar com a concorrência. A cada dia aparece mais gente. Só em Caxias, no ano passado, abriram cinco lojas do ramo, que nós ficamos sabendo. Por isso aprimorar o atendimento é tão importante —observa o empresário.