O último dia do seminário Direito Fundamental ao Trabalho Decente, que ocorreu nesta quarta-feira (28), em Bento Gonçalves, recebeu juízes, representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), além de um jornalista e um cientista político, que apresentaram o painel "O papel das instituições no enfrentamento ao trabalho escravo" e fizeram o encerramento do seminário. O evento começou na última segunda (26) e contou com a presença de profissionais de diferentes áreas, como procuradores e auditores, entre outras funções, que ministraram painéis sobre direitos humanos, jurídicos e trabalhistas.
Dando início ao painel desta quarta, a juíza Daniela Valle da Rocha Muller falou sobre o histórico da legislação brasileira para punir a exploração humana. O tema começou a ser abordado na legislação do país a partir de 1940. Houve uma mobilização da sociedade com denúncias sobre as condições degradantes, casos de extrema violência, assassinatos e tortura.
Mas foi apenas na década de 1980, segundo explicou Daniela, que as primeiras ações de enfrentamento começaram a ocorrer no Brasil, com auditores fiscais chegando em fazendas e o governo brasileiro admitindo a prática do crime. A juíza também entrou no assunto da impunibilidade histórica.
— O Brasil tem um histórico de impunidade na exploração predatória do trabalho humano. Nos organizamos em uma sociedade em que a venda do trabalho humano se vê no lucro e não fornece a dignidade na atuação. O Código Penal brasileiro é aberto à interpretação e, a partir dele, entram as nossas interpretações, os nossos preconceitos e ideias do imaginário que remetem o trabalho análogo ao período da escravidão, mas não é a mesma coisa. É preciso que façamos questionamentos a nós mesmos na hora de julgar um crime de analogia, para conseguirmos enfrentar essas situações e reduzirmos a impunibilidade desses casos de condições subumanas — ponderou a juíza.
Em seguida, o juiz federal de Caxias do Sul Rafael Farinatti Aymone deu início à apresentação reforçando a fala da juíza. Disse que, conforme o artigo 149 do Código Penal, existe uma abertura para a interpretação de quem julga os crimes de condições análogas à escravidão, o que pode contribuir com a baixa punibilidade registrada no país. O juiz citou ainda um exemplo relacionado à gravidade dos crimes.
— A baixa responsabilização gera um sentimento de frustação em relação à punição dos crimes. O Código Penal prevê a punição de dois a oito anos (para crime de trabalho análogo à escravidão). Para terem uma ideia, abastecer (o carro) com nota falsa (dinheiro falso) prevê 13 anos, ou seja, é considerado mais grave que reduzir uma pessoa à condição análoga — comparou o juiz.
Conforme Aymone, o processo de responsabilização criminal, mesmo a partir dos relatórios e documentos do Ministério Público (MP), segue de acordo com a legislação. Entretanto, para o juiz, o cenário de impunibilidade não é de todo negativo.
— No caso de pessoas que precisam cumprir como pena o trabalho feito para a comunidade, isso é uma forma de punição. Aquela pessoa que colocou outras em situação análoga está pagando com o próprio trabalho — pontuou Aymone.
De acordo com a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Lys Sobral Cardoso, a grande maioria do trabalho análogo à escravidão é registrada no meio rural. Produções em terras são locais centrais para o enfrentamento de condições degradantes vivenciadas por trabalhadores. A prática, segundo ela, é responsabilidade de todo o Estado.
— Um caso que atinge a uma pessoa, fere toda a cidadania brasileira, fere todo o Estado. Garantir direitos, como atender vítimas, estruturar ações, atuar para que o Judiciário tenha respostas melhores, conseguirmos provas (dos crimes). Essa garantia de direitos é papel nosso. Estamos aqui para trazer garantias, fazer esse meio de campo e instrumentalizar garantias — afirmou a procuradora.
Já o auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Rafael Zan levou para o painel o aumento de casos de denuncias registradas em 2023. Conforme o profissional, foram cerca de 4 mil denúncias recebidas na Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE).
Além do aumento, Zan mencionou os casos de resgate registrados na Serra no ano passado. O auditor apresentou números de pessoas resgatadas por municípios: 26 em Serafina Corrêa, 13 em Venâncio Aires, 23 em Flores da Cunha, 14 em São Francisco de Paula, 80 em Bom Jesus e 210 em Bento Gonçalves, considerando os 207 que participavam da colheita da safra da uva.
Reforçando o que foi citado pela juíza, o auditor pontuou o alto número de resgates feitos em área rural. Segundo Zan, ao todo são 85% dos casos em terras e 15% em área urbana.
Encerramento
Fazendo o encerramento do seminário, o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto abordou a vulnerabilidade das pessoas ao trabalho análogo à escravidão, destacando que a condição cresce em momentos de crise econômica. Além disso, conforme Sakamoto, resgates de trabalho análogo crescem com o aumento da atividade econômica.
Ainda de acordo com o jornalista, a prática da redução de pessoas a essas condições é uma forma de corte de custos que atingiu a indignidade humana.
— Trabalho análogo à escravidão é a desigualdade brasileira, miséria, pobreza extrema, situação econômica que fazem as pessoas irem em busca de uma alternativa de vida por não terem outra saída — citou Sakamoto.
Para o jornalista, o cenário pode ser visto com três eixos: pobreza, ganância e impunidade. A impunidade e a ganância podem ser combatidos com fiscalizações, decisões judiciais, ações do Ministério Público, lista suja, indenizações milionárias que causem prejuízo em vez de lucros, entretanto, o foco maior para o combate, para Sakamoto, é combater a pobreza.
— A pobreza é uma perna que precisamos avançar. O Brasil tem falta de oportunidades, falta de serviços públicos, saúde, moradia, transporte. A pobreza é a falta de uma série de oportunidades para as pessoas se desenvolverem e serem protagonistas da própria vida. Precisamos avançar fortemente nesse eixo para conter os casos análogos à escravidão — concluiu o jornalista.
Após o painel e o encerramento, houve a leitura de uma carta do evento em Bento Gonçalves, citando a "superexploração e desumanização de trabalhadores e trabalhadoras". A carta pontuou ainda ser "indispensável a promoção da justiça social" e mencionando a legislação como contribuição para a erradicação do trabalho análogo à escravidão. Houve ainda um agradecimento a todos os participantes e painelistas que compartilharam perspectivas e conhecimentos.