Dizem por aí que basta uma igreja e uma padaria para que se constitua uma cidade. O entendimento é de que o alimento, tanto para o corpo, quanto para o espírito, é fundamental para a vida humana. Em Caxias do Sul, os requisitos certamente foram preenchidos. Especificamente no caso das padarias (incluindo as confeitarias), são 234 estabelecimentos abertos na cidade. O dado é do Mapa de Empresas da Receita Federal, que também contabiliza 165 empresas classificadas como fabricantes de produtos de panificação industrial.
Por trás de cada pão quentinho recém saído do forno, há uma cadeia produtiva que, por mais que se torne cada vez mais complexa e modernizada, continua tendo como protagonista ele, o padeiro. Da produção massiva até o formato mais artesanal, são os profissionais da panificação que reproduzem, todos os dias, a multiplicação dos pães, garantido que o alimento mais antigo do mundo continue chegando à mesa do consumidor. No Dia do Panificador, celebrado neste sábado (8), conheça a trajetória de padeiros que ajudam a manter a cidade alimentada.
"Quem é o padeiro onde você compra pão?"
"Um senhor bem velhinho ia todo dia na padaria. Muito sisudo, de poucas palavras, comprava o pão e ia embora. Um dia ele bate no vidro - eu produzia atrás de um vidro pra ficar de olho no balcão - e ele me chama, bem sério. Quando o cliente te chama assim, você já vai apavorado, pensando 'meu Deus, o que aconteceu?'. Aí ele disse: 'Queria apertar a sua mão'. Disse que passou mais de 30 anos da vida dele comprando pão na mesma padaria. Conhecia o padeiro, era cliente fiel da padaria, até que o padeiro se aposentou, o local foi assumido por outra pessoa e, em pouco tempo, fechou. Estou há mais de 30 anos comprando pão de supermercado e eu não faço a menor ideia de quem é o padeiro, agora tenho a oportunidade de apertar a mão do meu padeiro", ele disse. E realmente, quem é o padeiro onde você compra o pão?"
O relato acima é de Rodrigo Gomes, 45 anos, padeiro há uma década. Orgulhoso da profissão que escolheu por amor, depois de deixar o emprego que não o fazia mais feliz na indústria de telhas, e com o avental polvilhado de farinha, ele lamenta a desvalorização da atividade e o quanto as atribuições de empresário têm ocupado o tempo que ele preferia estar majoritariamente passando do jeito que mais gosta: com a mão na massa. O profissional busca preservar o modelo artesanal de produção ao qual se propôs quando fundou a Pane & Salute, em Caxias do Sul.
Carioca radicado no segunda maior município do RS, ele afirma ter sido um dos pioneiros locais na retomada do exercício da fermentação natural e longa fermentação. O resultado é um pão mais saudável, leve, com a casca mais grossa e sabor mais azedo, algo que ainda gera estranheza em boa parte da população. O resgate da maneira ancestral de fazer pão, porém, é predominante em países como a Itália e a França e ganha cada vez mais espaço no Brasil.
— Eu vim do Rio (de Janeiro) e por lá temos uma influência portuguesa muito forte, a cidade tem uma padaria por esquina. Percebi que aqui, pelo tamanho da cidade, ainda era muito fraca de padaria. Comecei por oportunismo, achando uma brecha do mercado. Me apaixonei pelo negócio e não consegui largar — relata Gomes, que deu início ao empreendimento com a venda de porta em porta, há 10 anos.
Dois anos depois, abriu as portas da primeira unidade da Pane & Salute, na Rua Garibaldi, onde ocorreu o episódio com o cliente que ficou feliz por apertar a mão daquele que preparava o pão de todo dia. Atualmente, a padaria tem duas unidades na cidade. A da Garibaldi mudou-se para o bairro Exposição e a outra fica na Avenida Júlio de Castilhos. É a maior, com 20 colaboradores. A diversificação do mix, com confeitaria, café, pizza, e produtos como frios e pastinhas não tiraram o protagonismo do pão: são 20 tipos oferecidos.
São oito toneladas de farinha por mês, transformadas em 14 toneladas de pão, em um tempo de preparo que, conforme a receita, pode levar de 24 a 48 horas. O produto é comercializado nas lojas próprias e também destinado a hotéis e restaurantes da cidade e região. Na equipe de produção, são cinco pessoas colocando a mão na massa, atuando sob os ensinamentos de Gomes.
— Quando eu fui buscar conhecimento a respeito desta maneira de fazer pão, não tinha nem a farinha sendo vendida no Brasil. A literatura também era basicamente estrangeira, fui aprender em alguns cursos fora. Hoje ainda é difícil de encontrar mão de obra qualificada pra isso, então quem começa acaba sendo meio que do zero mesmo e eu vou ensinando - afirma o proprietário.
Robert Jean, de 44 anos, é um destes casos. Haitiano, ele vivia e trabalhava com panificação na República Dominicana antes de se mudar para Caxias do Sul. Foi um dos primeiros colaboradores contratados pela Pane & Salute, há oito anos, e hoje celebra os aprendizados que o emprego lhe proporciona, além das conquistas que alcançou por meio do exercício da profissão de padeiro:
- Hoje tenho minha casa própria e pude trazer minha família para o Brasil - comemora Jean.
Do balcão à indústria
Na Padaria Turatti, a realidade é um pouco diferente. O pequeno negócio comprado em 1988 por Leodacir Luiz Turatti, 59 anos, quando ele migrava de Encantado para Caxias do Sul em busca de um trabalho, deu a ele a profissão de padeiro e, desde 1996, ele investe no ramo em formato industrial, com equipamentos modernos que auxiliam na produção de pães, bolos, cucas e biscoitos que chegam à mesa de consumidores de toda a região.
— Em sociedade com meu tio, compramos a padaria Pioneiro, onde trabalhei como padeiro por oito anos. Depois abri meu negócio próprio, com a fabricação — relata o empresário, que continua sendo o responsável pelas receitas, fazendo também o controle da qualidade dos produtos distribuídos em mais de 70 supermercados, restaurantes e padarias.
O carro-chefe é o pão francês, mais conhecido como cacetinho, que tem 80 a 100 mil unidades produzidas diariamente. Além disso a empresa faz, em média, 1,2 mil pacotes de biscoitos e 50 cucas por dia. Pães de xis e de cachorro-quente são, em média, mil unidades por semana, sendo que neste período que é de festas juninas, a produção é cinco vezes maior.
A produção inclui, ainda, itens como o pão caseiro na palha de milho, um produto alusivo ao pão assado no forno a lenha, herança da imigração italiana reproduzida na Festa da Uva por Turatti há quase 30 anos.
— As pessoas gostam muito, então acabamos produzindo uma versão para que possam comprar o ano inteiro, não apenas na festa. Esta versão é feita no forno industrial, mas tem a palha que era usada como forma antigamente no forno a lenha — afirma Turatti, que hoje vê os filhos atuando no ramo da panificação.
Fabiano Turatti, 36, já passou pela produção, mas hoje cuida das vendas da empresa familiar. O profissional que cresceu vendo o pai fazendo pão diz ter orgulho da atividade.
— Sujou o umbigo de farinha, não sai mais. Mesmo trabalhando com vendas hoje, eu sempre gostei de fazer isso, com certeza dá muito orgulho, porque o pai veio da colônia, nos criou e nos educou com isso, não tem como não ter orgulho — destaca Fabiano.
A panificação no RS
De acordo com o Sindicato das Indústrias de Panificação e Confeitaria e de Massas Alimentícias e Biscoitos do Rio Grande do Sul (Sindipan/RS), o Estado contabiliza hoje 8 mil estabelecimentos considerados "padarias". Nesse caso, os estabelecimentos nos quais o pão é, de fato, produzido. Ainda conforme a entidade, o setor emprega diretamente hoje 80 mil pessoas e vivencia um momento de retomada do crescimento impactado pela pandemia.
De acordo com presidente do Sindipan/RS, Arildo Bennech Oliveira, o faturamento do setor girou em torno de R$ 8 bilhões em 2022. O montante é maior do que os R$ 7 bi de 2019 e se dá após uma queda para R$ 6,5 bi em 2020 e os R$ 7 bi de 2021. Um crescimento puxado, na visão dele, pela qualificação e diversificação dos produtos do balcão.
— As padarias têm adotado novo modus operandi, porque aquela parte de antigamente, de só fazer pão, não dá mais. A padaria tem que fazer pão com massa diferente, de fermentação longa, muitas aderiram ao café, pães diferentes, almoço, espaço maior e produtos de mais qualidade — destaca o presidente.