Referência para a vizinhança, eles resistem à passagem dos anos e à concorrência acirrada de grandes redes que se instalam na cidade. Alguns mantêm processos tradicionais, enquanto outros buscam formas de se reinventar. A verdade é que, independentemente do perfil, os minimercados estão inseridos de forma numerosa pelos bairros de Caxias do Sul e se destacam pela clientela fiel.
Segundo dados da Receita Federal, são pelo menos 678 estabelecimentos classificados como minimercados, mercearias e armazéns no município. Para o presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios (Sindigêneros) de Caxias do Sul, Volnei Basso, a forte aproximação com a clientela é um dos fatores que faz com estes empreendimentos se mantenham ativos.
Normalmente, são empresas familiares e estão enraizadas em seus bairros, tendo uma clientela de vizinhança
VOLNEI BASSO
Presidente do Sindigêneros
— Com certeza, este é um dos diferenciais que os mercados menores têm condições de prestar. Normalmente, são empresas familiares e estão enraizadas em seus bairros, tendo uma clientela de vizinhança. Essa integração com os vizinhos, na minha opinião, faz com que as lojas suportem a grande concorrência que temos hoje — aponta o presidente da entidade.
O perfil detalhado por Basso descreve bem um mercadinho localizado na Rua Treze de Maio, esquina com a Tronca. O Mercado Preço Bom existe há 23 anos no mesmo ponto e é gerenciado pelo casal Adelar Belleboni, 58 anos, e Ana Paula da Silva, 45. Do corte da carne ao atendimento no caixa e reposição de produtos, tudo é feito pelos dois. São eles também que atendem diferentes gerações das mesmas famílias e têm que lidar com situações mais delicadas, como o falecimento de clientes estimados.
— Os clientes são muito queridos. A gente saiu três dias para descansar e, meu Deus, era o telefone que tocava, era gente passando aqui na frente para ver onde a gente tava. Não adianta, eles são acostumados com nós — revela Adelar, que se mudou de Carlos Barbosa nos anos 2000 justamente para administrar o negócio em Caxias.
Embora esteja em um ponto mais central, o Preço Bom carrega bem a essência dos mercadinhos de bairro: as prateleiras são bem recheadas, conta com algumas porções de frutas e legumes frescos, tem açougue e muitas outras pequenezas que "salvam" os moradores das redondezas na hora do aperto.
— Tu não vai sair daqui e vai lá no mercado grande pegar meia dúzia de coisas que tu tem na porta . Às vezes, o pessoal paga um pouquinho mais. É uma facilidade — defende o proprietário.
Há pouco tempo que o mercadinho começou a aceitar compras com Pix. Antes, era somente no dinheiro ou o caderninho (para quem marca na conta) — este "privilégio" apenas para um pequeno grupo e sem admissão de novos "participantes".
Sem cartão ou Pix, família Passos investe na relação com os clientes
Enquanto a tecnologia avança a passos largos, com novas facilidades surgindo a cada dia, há quem prefira manter os métodos tradicionais para lidar com a clientela. É o caso do Mercado Muladeiro, referência para moradores do bairro Sagrada Família, em Caxias. Se uma única palavra do vocabulário contemporâneo pudesse definir o empreendimento da família Passos seria "raiz". Isso porque o minimercado só aceita compras em dinheiro e ainda mantém um caderninho de vendas no fiado para uma pequena parcela dos compradores.
Parados no tempo? Para a sócia-proprietária Cátia Cristiane dos Passos, 39 anos, não. Ela argumenta que é uma forma de manter a essência e o perfil do mercadinho, fundado pelo patriarca, José Eroquez dos Passos, 65, há 40 anos — antes, sempre com espírito de comerciante, seu José chegou a vender alimentos de bicicleta nas redondezas de empresas.
— É o que conserva os nossos clientes. Se o cliente quer buscar algo mais chique, ele tem a opção de ir em grandes mercados. O Muladeiro é isso. Esse é o nosso modelo de negócio — justifica Cátia, acrescentando que até tentou implantar algumas alterações, mas há certa resistência familiar a novos processos.
Se não há Pix ou cartão de crédito, sobra simpatia, diálogo e aproximação com os clientes. Às vezes, uma simples compra se transforma em uma conversa, um desabafo ou um momento de descontração. O minimercado não conta com funcionários. Pai e filha fazem todas as funções.
Eu acho que é isso que falta hoje em dia nas redes de mercados: essa questão de interagir, de ouvir, de acolher
CÁTIA DOS PASSOS
Proprietária de um minimercado
— Às vezes, o pessoal vem comprar alguma coisa e fica batendo um papinho. Eu acho que é isso que falta hoje em dia nas redes de mercados: essa questão de interagir, de ouvir, de acolher, poder dar uma resposta para essa pessoa que busca esse contato mais interpessoal — acredita ela.
Cátia, que cresceu em meio às prateleiras recheadas de alimentos, hoje vê a filha Maitê, 2, vivenciar a rotina da sua infância. A menina circula livremente pelo estabelecimento e é o xodó da vizinhança. Formada em Psicologia e Pedagogia, Cátia decidiu deixar de lado as duas profissões para se empenhar no negócio da família, decisão que ficou mais forte com a morte da mãe dela, Terezinha, em 2021, vítima da covid-19. O falecimento, inclusive, foi outro episódio marcante e que mostrou como o Muladeiro tem o apreço da vizinhança no Sagrada Família.
— Minha mãe batalhou muito para a gente chegar até aqui. Quando ela faleceu, fecharam a rua e vieram rezar um terço na frente do mercado. O falecimento dela comoveu o bairro todo. Senti que estas pessoas se consideravam parte da família. Nos sentimos acolhidos pelos clientes — comenta.
A percepção de Cátia sobre a relação de família com a clientela não está equivocada e é atestada por uma moradora do bairro:
— Quando eles saem de férias, parece que a rua fica vazia, falta alguma coisa. A gente criou uma amizade, é como se fosse uma família mesmo — avalia a vizinha, Betriz Secco, 59.
Reinvenção para sobreviver aos grandes
Localizado no bairro Rio Branco, o Giacomin Mini Mercado existe desde 2009, mas foi recentemente, há quatro anos, que os proprietários perceberam que era preciso mudar para evoluir enquanto negócio. Antes repleto de prateleiras, com grande variedade de produtos, o mercadinho sofreu uma verdadeira revolução na disposição interna, na mobília e também na oferta de alimentos.
— Nós pensamos que, se não mudássemos naquele momento, alguém iria "engolir" a gente. Antigamente, tínhamos muito produtos de limpeza, higiene, alimentos de cesta básica, feijão, arroz... Aos poucos, começamos a mudar. Iniciamos pelo açougue, com cortes diferentes e carne de mais qualidade. Vimos que foi algo que deu bastante resultado e era uma lacuna a ser preenchida. Aí aplicamos na padaria, com a produção interna. Eu digo que, se não tivéssemos feito essa mudança, não existiríamos mais —argumenta o gerente do estabelecimento, Jonas Giacomin, 30.
As prateleiras ficaram mais modernas e enxutas, dando lugar a produtos selecionados e personalizados. Mesmo assim, ainda há algumas opções para quem precisa alimentos do dia a dia, para alguma "emergência". A transformação também impactou no perfil da clientela. Hoje, segundo Jonas, uma boa parcela dos compradores vem de outros bairros. Mas aí entra outro ponto forte do minimercado e que ajuda a atrair pessoas de outras regiões: as redes sociais. O estabelecimento investe bastante na divulgação no Facebook e Instagram. As postagens são frequentes e com imagens de produtos reais, do próprio estabelecimento.
— Hoje (quinta-feira, fim de tarde), para tu ter ideia, nenhum destes clientes que está aqui é do bairro. Eles vêm de outros lugares, falam um para o outro. Estamos colhendo bons frutos dessa decisão — aponta o gerente.
Na esteira das mudanças de posicionamento e nicho, veio a necessidade de ampliar a mão de obra. Logo que abriu as portas, o Giacomin funcionava apenas com três pessoas — pai, mãe e filha. Hoje, a equipe conta com 10 pessoas e precisa ser ampliada para atender a demanda.
Para o futuro, o gerente prospecta continuar evoluindo:
— A gente não pensa em atender como todo mundo atende. Acho que devemos continuar buscando referências fora da cidade, investindo nos cortes de carne e ainda estamos com planos para este ou o próximo ano de duplicar a padaria — conta Jonas.