A sequência de aumentos do gás de cozinha, combustíveis e na tonelada de trigo influenciam no preço de um dos produtos mais presentes na rotina alimentar dos brasileiros: o pão. Do cacetinho com margarina, no café da manhã, aos lanches mais rebuscados, do jantar ou do fim de semana, o consumidor já está sentindo no bolso o impacto dos reajustes dessa cadeia econômica.
O conflito europeu entre Rússia e Ucrânia afetou, em níveis históricos, o valor do trigo, atingindo diretamente o preço da farinha negociada com as padarias. Uma reportagem divulgada por GZH mostra que no interior do Rio Grande do Sul, a tonelada do grão atingiu R$ 1.960, na primeira semana de março, preço recorde e com alta de 26% em sete dias, conforme a consultoria Safras & Mercado.
Em Caxias do Sul, pequenos empreendimentos já lidam com o encarecimento das matérias-primas que resultam em fornadas de pãezinhos. É o caso da padaria artesanal Fatto a Mano, no bairro Jardim América. A pequena empresa familiar tocada pela padeira e confeiteira Gleice Bueno Indicatti, 33 anos, com a mãe dela, Sirvane Bueno Indicatti, 53, viu o preço da saca de farinha de 25 quilos saltar de R$ 69 para R$ 78 em um intervalo de dez dias, entre 8 e 18 de março, um aumento de 13%.
Segundo Gleice, um reajuste de quase 7% já havia sido aplicado em meados de fevereiro. Embora tenha sofrido com as recentes altas, Gleice diz que não repassará os reajustes aos clientes nos próximos dias.
— O que recebemos não repassamos nada ainda e, provavelmente, vamos segurar nos próximos 15 a 20 dias. Teremos mais aumentos pela frente, como na saca de farinha importada, nos ovos... Como somos uma empresa pequena, não conseguimos passar o reajuste da mesma maneira que uma grande. Precisamos ser maleáveis, ter um jogo de cintura (para lidar com os fornecedores e clientes). Precisamos se ajudar, porque não sou só eu que estou sendo impactada — avalia a empreendedora.
A padaria artesanal de Gleice não atende diretamente o consumidor final. Os mais de 25 pães do catálogo são negociados com hamburguerias, empórios e restaurantes de cinco cidades da Serra. Há a opção de entrega no município, feita por um motorista terceirizado parceiro, ou retirada na porta, opção mais escolhida pelos clientes, segundo a empreendedora. Como a empresa atende empreendimentos de outras cidades, por vezes, é preciso estar aberta a negociações, para que os custos com combustíveis não resulte na perda da parceria.
— Tenho um cliente, por exemplo, em Nova Araçá. São muitos quilômetros. Para não impactar tanto para eles e também não pesar para nós, a gente divide a viagem — comenta.
"Não temos mais parâmetro", avalia dono de restaurante
Para além dos aumentos recentes no gás de cozinha, nos combustíveis e na tonelada do trigo, o empreendedor Roberto Siqueira Baldisserotto, 64 anos, descreve as demais incertezas presentes no cenário econômico nos últimos tempos. Ele conduz o restaurante DoRoberto Burguer e Bier desde 2018 e é cliente fixo da padaria artesanal da empreendedora Gleice Bueno Indicatti.
Mesmo jovem, o negócio já vivenciou muita coisa, como as restrições sanitárias provocadas pela pandemia, com o abre e fecha dos restaurantes; o encarecimento da carne no ano passado e, mais recentemente, o aumento nos legumes e verduras diante da estiagem que castigou agricultores no último verão.
— Colocamos um negócio esperando um resultado. Mas esse resultado não é mais o que planejamos. Tudo está instável e não é só comigo, é com todo mundo. Não temos mais parâmetro — avalia Baldisserotto.
Como consequência, os hábitos dos consumidores também têm mudado, o que afeta o planejamento do estabelecimento. Se no auge da pandemia a telentrega foi a preferida, agora o restaurante vê novamente o movimento aumentar, precisando, portanto, oferecer um ambiente seguro, onde cliente se sinta confortável em frequentar. Para isso, mais despesas que se somam no fim do mês:
— Queira ou não queira, a pandemia não terminou. Eu fiz muita coisa para diminuir os riscos (apontando para as estruturas de vidro que separam as mesas externas do restaurante). Uso produtos de desinfecção hospitalar que ficam uma semana nas paredes — comenta.
TRIGO COM PREÇO RECORDE
Os recentes reajustes de preços já começam na primeira etapa de preparação do pão. A farinha vem do trigo, o qual teve preço recorde com a tonelada do grão atingindo R$ 1.960 na primeira semana do mês. Na padaria de Gleice, em 10 dias, o preço da saca de 25 quilos de farinha nacional subiu de R$ 69 para R$ 78, um reajuste de 13% — o empreendimento utiliza cerca de 10 sacas por semana e já havia absorvido reajuste de 6,3% em fevereiro.
Além disso, o fornecedor da farinha importada já alertou que conseguirá segurar o preço somente até o próximo dia 31. Os valores que serão aplicados em abril ainda não foram informados à empreendedora. Em março, o preço pago foi de R$ 325 por 25 quilos.
Outro insumo usado na preparação da massa, o ovo, também é alvo de encarecimento e preocupa a empreendedora. Em janeiro, ela negociava a bandeja com 30 unidades por R$ 11. Agora, já está pagando R$ 14 — o valor original seria R$ 16, mas Gleice tem conseguido negociar um desconto de R$ 2 com o fornecedor.
— A gente sabe que nesta época o ovo sobe mais, mas já vem impactado por causa do trigo também. Usamos de 10 a 12 bandejas por semana, então, eu 'chorei' muito para deixar de R$ 16 para R$ 14 — detalha Gleice.
PREFERÊNCIA POR FORNO ELÉTRICO
Na esteira dos reajustes e da preparação do pão, o gás liquefeito de petróleo (glp), popularmente chamado de gás de cozinha, teve acréscimo recente de 16,06%. Na Fatto a Mano, o encarecimento não é sentido, uma vez que a padaria utiliza dois fornos elétricos. A opção pelo não uso do gás tem explicação:
— Com o aumento da produção, tivemos que adquirir fornos mais tecnológicos. Um dos motivos (pela escolha dos elétricos) é que o forno a gás não mantém uma temperatura constante. A segunda questão é que o gás teve vários aumentos o ano passado — explica Gleice, detalhando que, no início, quando tinha fornos a gás, a empresa utilizava dois botijões de 13 quilos por semana.
Para se ter uma noção da utilização dos fornos, o pão estilo brioche, o qual tem mais saída entre os pedidos da empresa, leva exatamente 29 minutos para ser assado. O equipamento mais utilizado por Gleice tem capacidade para uma placa com 20 unidades por vez — cada receita rende cerca de 130 pães.
Além da energia elétrica direcionada para os fornos, a padaria ainda conta com uma geladeira e uma câmara para fermentação, onde as massas ficam determinados períodos antes de ir para o processo final de preparação.
FRETE TERCEIRIZADO
Para chegar ao consumidor final da padaria Fatto a Mano, ou seja hamburguerias e restaurantes, o pão precisa ser transportado por meio de um veículo. Assim, na cadeia de reajustes, mais um encarecimento: desde o dia 11, o preço da gasolina e o diesel estão 18,08% e 24,9% mais elevados, respectivamente.
Gleice conta que tem parceria com um motorista terceirizado para oferecer um preço mais acessível aos clientes que optam pela entrega. Já quem decide por retirar na porta da empresa, arca com o custo do deslocamento. Também há uma terceira situação avaliada: os clientes de municípios mais distantes negociam a divisão da viagem, uma forma que a empreendedora encontrou para este fator não pesar tanto no bolso dos seus clientes e, assim, manter a fidelidade deles.
O PÃO FAZ AUMENTAR PREÇO DO HAMBÚRGUER
Na outra ponta do setor alimentício, quem utiliza os pães produzidos por Gleice é o empreendedor Roberto Siqueira Baldisserotto, 64 anos. No DoRoberto Burguer e Bier, negócio que ele mantém no bairro Exposição, o pão se transforma em hambúrguer e chega à mesa ou à casa do cliente com outros inúmeros incrementos.
Para sair do aspecto original, o pão precisa ganhar sabor, seja por meio de carnes, queijos ou legumes. Desta forma, o pequeno empreendedor também relata impactos com os recentes reajustes, tanto nos insumos, como nos meios de preparação do produto.
Com a estiagem, Baldisserotto viu legumes e verduras dobrarem de preço, como o caso do pé de alface, que antes era adquirido a R$ 1,75 e, agora, custa, pelo menos, R$ 3,50. Na preparação do hambúrguer, a preocupação é com o preço do gás de cozinha, o qual ficou 16% mais caro desde o dia 11. Neste sentido, o gasto mensal girava em torno de R$ 1.100. Com o aumento, a expectativa de Baldisserotto é desembolsar, no mínimo, R$ 1.276 por mês.
ESCALADA DE PREÇOS
O lanche pronto que chega ao prato do consumidor acaba absorvendo toda a sequência de reajustes que ficam nos "bastidores". Da farinha que prepara a massa do pão ao gás que faz a cocção do hambúrguer, tudo é impactado pela escalada de aumentos nacionais e internacionais.
Para não sair no prejuízo, nem colocar em risco as contas do próprio negócio, Baldisserotto detalha que terá que repassar, em breve, um reajuste de 5% a 10% em cada lanche:
— Agora não tenho mais como segurar, vou ter que repassar. Vai ser o valor mínimo, abaixo do que eu teria que repassar. É difícil, porque sabemos que não vai aumentar o salário do consumidor. Vai ser complicado agradar os clientes — lamenta o empreendedor.