No encerramento da série O Futuro da Economia, que contou com 15 temas do ambiente econômico submetidos a avaliações e prognósticos de especialistas em diversas áreas, é a vez de um olhar atento ao maior setor produtivo do Brasil, o de serviços. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de maio deste ano, o setor de serviços é responsável por 63% da participação do Produto Interno Bruto (PIB). E também é o que mais emprega no país. Em 2019, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o setor foi o que mais gerou empregos, com saldo de 382.525 vagas formais. Segundo colocado, o comércio ficou bem atrás, com 145.475 novos postos de trabalho e na construção civil, com 71.115 novas vagas.
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Na pandemia, o setor de serviços tem sido o mais afetado, não apenas por sua ampla participação na economia, mas porque grande parte das perdas não serão repostas. Esse é aliás, uma das avaliações de Luigi Nese presidente fundador da Conferência Nacional de Serviços (CNS) e atual vice-presidente executivo da entidade.
— O setor perdeu bilhões em recursos e não são recuperáveis. Porque, diferentemente de outro setor, em que você ainda pode vender duas ou três camisa, em estoque, quando um evento é cancelado ele não mais é realizado, então você não recupera. Mesmo com a reabertura gradual dos restaurantes, uma pessoa não vai almoçar três vezes no mesmo dia — argumenta Nese.
A pesar de presente em todas as instâncias da vida econômica de um país, o setor de serviços raramente é percebido em sua complexidade. Fazem parte da mesma "família" os médicos, motoristas, economistas, empregadas domésticas, publicitários, professores, advogados e artistas. Ou seja, um setor tão diverso, seja em sua atividade ou mesmo na maneira como a sociedade enxerga esses profissionais.
— Falta para o Brasil uma visão estratégica para o setor da economia criativa. Porque ainda existe uma visão perversa no país de que artista é vagabundo e vive da mamata do Estado. Isso não condiz com a realidade, mas é uma visão que se mantém e que acaba atrapalhando o país — avalia a consultora Daniela Ribas, diretora do Data Sim, núcleo de pesquisa e organização de dados da cultura, sobretudo da área musical.
Entre as soluções apontadas pelos entrevistados, para que o setor volte a ser não apenas relevante, mas um diferencial na recuperação econômica, Daniela e Nese apontam caminhos diversos. Nese é defensor da desoneração da folha de pagamento, para que as empresas tenham mais fôlego de contratação na retomada econômica. Enquanto que, para a Daniela, o governo braseiro deveria exercer uma visão sistêmica da cadeia produtiva diversa do setor, com planejamento estratégico. Segundo Daniela, países com um invejado crescimento como a Coréia, entendem a relevância dos produtos culturais como fomento econômico.
Leia a seguir, a entrevista com Luigi Nese e Daniela Ribas.
JORNALISMO DE SOLUÇÕES
O QUE É JORNALISMO DE SOLUÇÕES, PRESENTE NESTA SÉRIE DE REPORTAGENS?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes com diferentes visões e aprofundamento de temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
LUIGI NESE
Presidente Fundador da Conferência Nacional de Serviços (CNS) e atual Vice-Presidente Executivo
FORÇA ECONÔMICA DO SETOR
"O setor de serviços é o maior empregador do país, com mais de 70% da mão de obra. Esse mercado bem diversificado, é formado, geralmente, por pequenas e médias empresas, em áreas como tecnologia, eventos, saúde, cultura e educação. Em uma crise, como essa que estamos enfrentando, o setor sofre primeiro os efeitos negativos. Por exemplo, os bares, restaurantes e o setor de eventos, tiveram uma brutal paralisação desde o início da pandemia. O setor perdeu bilhões em recursos e não são recuperáveis. Porque, diferentemente de outro setor, em que você ainda pode vender duas ou três camisas, em estoque, quando um evento é cancelado ele não mais será realizado, então você não recupera. Mesmo com a reabertura gradual dos restaurantes, uma pessoa não vai almoçar três vezes no mesmo dia. Os almoços não vendidos antes não são recuperados. O turismo é outra atividade que continua capenga. Quem sabe a partir de setembro se possa tentar fazer alguma coisa para se recuperar. Mas o certo é que o setor de serviços será o último a reabrir complemente."
PLANO DE REPOSIÇÃO
"Quando a economia reaquecer, o setor de serviços será o mais demandado, porque é o maior empregador do país. Será preciso fazer um plano de reposição desses empregos que têm sido perdidos, com planejamento interativo entre os setores laborais e empresariais, além do governo. Porque, quando voltar a empregabilidade, o emprego estará no setor de serviços, e não mais na indústria ou na agricultura, pois eles estão se automatizando a cada dia mais. Se observarmos, graças a Deus, a agricultura tem mantido a economia nesse período de crise, só que eles têm feito um investimento alto em tecnologia, por isso, a tendência será um menor número de pessoas não trabalhando mais no campo. Então, restará o setor de serviços, que é a única área que pode dar vazão a recomposição do emprego. Está na hora de o Brasil investir em áreas que possam alavanca ainda mais a economia. O turista estrangeiro, por exemplo, gasta entre US$ 6 a 7 bilhões, por ano, aqui no Brasil. Mas podemos triplicar isso se investirmos em melhores serviços".
DESONERAÇÃO DA FOLHA
"Defendemos há 20 anos a desoneração da folha de pagamento. Se não desonerar, continuaremos a pagar impostos ao invés de colher o fruto do nosso trabalho. Porque o impacto sobre o salário é ruim para o trabalhador e nocivo para a empresa. Antes mesmo da reforma tributária, estamos defendendo a desoneração. O governo parece propenso a aceitar a desoneração, em contrapartida, criaria uma contribuição financeira. Nossa ideia é que, com a desoneração, quando o trabalhador for sacar o dinheiro do salário ele tenha um ganho real melhor, apesar da contribuição financeira. Não queremos que o trabalhador pague essa conta sozinho, e sim, que seja toda a sociedade. Porque como diz o artigo 195 da Constituição "a seguridade social será financiada por toda a sociedade". Essa contribuição que defendemos é a antiga CPMF, ou você pode chamar como quiser. Defendemos que seja uma contribuição, porque se for num novo imposto terá de ser dividido. Sendo uma contribuição vai tudo para a federação. Muita gente não gosta da contribuição, porque ela acaba denunciando movimentações bancárias um tanto esquisitas. Além de ser uma forma de tributo mais simples, evita a sonegação, porque você consegue saber exatamente quem está pagando e quanto."
AUMENTAR A FORMALIDADE
"Quando a folha for desonerada, aumentará a formalidade. Muitas empresas, para não pagar mais impostos, pagam seus funcionários por 'fora'. Acreditamos que a desoneração vai simplificar o sistema e melhorar o relacionamento entre empregados e empregadores. Outro exemplo é o décimo terceiro. Hoje em dia, só pode ser pago em duas vezes. Mas a intenção é que ele possa ser pago em várias parcelas, ao longo do ano. Com uma maior flexibilização da área trabalhista tenho certeza de que diminuirão os conflitos entre empregados e empregadores na Justiça. Abrimos (dia 29 de julho) uma frente parlamentar da desoneração, com o deputado Marcelo Freitas (PSL-MG). Ele está engajando os deputados para que possamos levar essa causa à frente (até o dia 2 de agosto, Freitas já havia conquistado 50 das 171 assinaturas necessárias). O governo sinaliza que tem interesse na desoneração da folha de pagamento. Até mesmo o presidente Jair Bolsonaro, que não era muito cético à proposta de voltar com a contribuição, tem dito, que se o povo quiser, ele aceita".
DANIELA RIBAS
diretora do Data Sim e consultora da área da música
CADEIA PRODUTIVA
"Dentro de uma cadeia produtiva de uma área não tem só aquilo que é efetivamente feito na área. Vou dar um exemplo. Todo país organiza suas contas de maneiras que o PIB é contabilizado através de contas. Toda riqueza produza no país, passa então por um sistema de contas satélite. A lente da câmera que um fotógrafo usa, poderia contar tanto para a área da cultural como a área da saúde, porque, numa suposição, a lente pode ser usada também em um microscópio. Mas então, conta duas vezes para o PIB? Não, entra uma vez só. O que eu quero dizer é que ao redor dessa conta, que contabiliza o PIB geral, tem contas satélites, que orbitam em torno da principal. Por isso, que o PIB não é necessariamente a soma das contas satélites. Mas para entendermos a dimensão da cadeia produtiva de cada setor, aí sim, pode-se contabilizar, por exemplo, a lente para as contas da cultura e da saúde. É por isso, que para se ter uma visão do que é efetivamente uma cadeia produtiva, você não pode olhar apenas para uma área. É nesse sentido que entendo a falta que faz o Ministério da Cultura, porque só o governo pode trabalhar na linha de um pensamento sistêmico."
OLHAR ESTRATÉGICO
"Falta para o Brasil uma visão estratégica para o setor da economia criativa. Porque ainda existe uma visão perversa, no país, de que artista é vagabundo e vive da mamata do Estado. Isso não condiz com a realidade, mas é uma visão que se mantém e que acaba atrapalhando o país. Em um momento em que a economia global está sedimentada na revolução industrial 4.0, temos empresas que estão mudando o mercado como a Netflix, Amazon e Spotify. Essas empresas trabalham com algo que nos falta no Brasil, um altíssimo valor agregado. Nós poderíamos estar melhor posicionados nesse que é um trabalho simbólico, que envolve criatividade, que contempla não apenas a música, mas a moda e o setor automobilístico, por meio do design. Na minha opinião, o Brasil perde uma grande oportunidade de se posicionar nesse mercado, justamente pela falta de planejamento estratégico. Nem todos os países têm produtos culturais como os nossos."
COMO FAZER UM PLANEJAMENTO
"Sinceramente, não vejo a menor possibilidade de se mudar esse quadro. Vamos continuar sem uma visão sistêmica que permitiria um planejamento estratégico por parte do governo federal. Nós vamos continuar ainda mais defasados do que algumas países como a Coréia que entenderam a importância de se valorizar a cultura. A Colômbia, por exemplo, tem uma música riquíssima culturalmente, mas não tem um décimo do consumo interno que nós temos. No entanto, a exportação da música urbana colombiana está em primeiro lugar. Isso tudo não tem nada a ver com o conceito político de esquerda e direita. Porque, se no atual momento a direita não está tendo essa visão, a esquerda também nunca foi a 'campeã' de levar essa visão à frente. Existem dois exemplos bem emblemáticos de cidades que resolveram essa questão de falta de visão sistêmica. Uma delas é Adelaide, na Austrália e, a outra é Londres, na Inglaterra. Nesses dois casos, o que é comum, é que houve uma iniciativa governamental de olhar a cadeia produtiva de cima, identificando dentro dos interesses diversos, os interesses comuns, para o mais forte não engolir o mais fraco. Nessas cidades, foram criados conselhos, que atuam diferentemente dos que existem aqui no Brasil, como uma ação orquestrada de Estado, para equilibrar os interesses comuns. O Brasil faz isso com outros setores produtivos, mas não faz com a cultural, porque não está na agenda política."
PRODUTOS MAIS VALORIZADOS DO QUE OS SERVIÇOS
"Para entender porque as pessoas valorizam mais os produtos do que os serviços, temos de ir para o lado da Dani socióloga. Isso tem a ver com a nossa formação histórica. O brasileiro dá mais valor aos produtos, mas não valoriza o serviço, ou seja, as pessoas. Isso tem muito a ver com a maneira como o brasileiro vê as pessoas. É importante lembrar que fomos um dos últimos países do mundo a nos livrarmos da escravidão, porque isso está entranhado em nossa sociedade. O ator Pedro Cardoso tem uma metáfora perfeita para explicar isso. Ele diz que o sujeito é capaz de comprar um apartamento de R$ 1 milhão e reclama de pagar R$ 5 mil para alguém pintar as paredes do seu imóvel. O setor cultural também é tributário dessa concepção de que cultura é gasto, porque a atividade não é vista com seu valor intrínseco. Digo isso, mesmo quando a economia global nos dá sinais de que os países melhores sucedidos agregam valor nos seus serviços e produtos cultuais. Essa falta de percepção explica ainda porque ninguém quer taxar as grande fortunas nesse país, mas apoiam a volta da CPMF, que vai afetar diretamente quem vive do setor de serviços."