Há determinados assuntos que o senso comum aplaca sua complexidade. Um deles é a presença do Estado nas decisões e no cotidiano das pessoas, seja em sua versão física ou jurídica. Alimentado pela polaridade está o fato de que Jair Bolsonaro (sem partido), ao assumir a Presidência, tratou de reduzir o número de ministérios. Dos 39 que a presidente Dilma Rousseff (PT) manteve, Bolsonaro reduziu a 23. Mas seria essa a única forma de diminuir a presença do Estado? E mais, neste momento de exceção, por causa da pandemia do coronavírus, é possível manter a agenda neoliberal do ministro da Economia Paulo Guedes? Não seria, dadas às circunstâncias, ideal para o momento investir em uma política mais presente, mais ampla, justamente porque o povo está inseguro e mais necessitado do que antes da pandemia?
Para responder às questões acima e colocar mais luz sobre um assunto nem sempre tratado à altura, foram entrevistados o filósofo Luiz Felipe Pondé e o economista Guilherme Grandi. Um ponto em comum para ambos é a urgência em diluir esse discurso extremista e polarizado, uma espécie de Ca-Ju político, em que cabe perfeitamente a metáfora do sempre genial Nelson Rodrigues (escritor recifense, 1912-1980), que tratava do Brasil como a “pátria de chuteiras”.
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Grandi, atualmente professor doutor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), é crítico ao governo Bolsonaro.
– O Estado perdeu o controle da tomada de decisões e, quando toma, as faz de maneira inoperante, vacilante e frouxa. O governo não tem coerência no discurso, não consegue amenizar aflições nem melhorar as expectativas, muito menos, atender aos objetivos de longo e médio prazo, porque está refém do curto prazo. Esse Estado é inoperante, porque se envolve em questões secundárias, como a do armamento, e não em agendas prioritárias como saúde e educação – questiona.
Por outro lado, Pondé, que atualmente é diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende a migração da gestão do Ministério da Educação (MEC) para que seja administrado por Estados e municípios.
– Poderíamos fechar o MEC (Ministério da Educação), que continua a ser lerdo e burocrático. É um elefante branco que não serve para nada.
Pondé complementa:
– Você não precisa criar mais ministérios e chegar a 39, por exemplo. Não foi preciso criar ministério algum para implementar o Auxílio Emergencial. Defendo que tudo isso poderia ser melhor organizado pelos Estados e municípios e não ficar centralizado em Brasília.
Leia a seguir, a avaliação de cada um deles a respeito da crise da pandemia, cujo cenário quando o epicentro passar deve ser parecido ao que se viu nos pós-guerras.
“A agenda do Guedes nem é neoliberal, mas ultraliberal”, diz Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP)
Problemas estruturais
“Sem dúvida, o contexto da pandemia escancarou problemas estruturais, não só da economia brasileira, mas também mundial. Esses problemas, no Brasil, têm raízes estruturais e históricas, que se impõem como um obstáculo adicional às propostas neoliberais que vinham sendo cogitadas pelo governo. Podemos citar a questão de criação de novos postos formais de trabalho. Existia uma intenção do governo, muito tímida, mas que o contexto pandêmico colocou uma pá de cal avassaladora. Esse é um ponto, o outro, diante disso, obviamente, está o papel do Estado na condução da política econômica vislumbrada, que a meu ver, teve de ser alterada por completo. Costumo dizer que a agenda do Paulo Guedes (ministro da Economia) caiu e foi interrompida e, o que é o mais grave, não se colocou nada no lugar. Parte disso, porque o governo não tem um plano b, porque carece de ideias alternativas, ou ideias contracíclicas.”
Agenda neoliberal
“Eu diria que a agenda do Guedes nem é neoliberal, mas ultraliberal. Porque o ultraliberal excede os limites do neoliberalismo, que foi aquela política econômica Consenso de Washington, do início dos anos 1990, e que perdurou durante os governos do FHC (Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil em dois mandatos, entre 1995 e 2003). A proposta do Guedes excede os limites, porque intensifica vários pontos da agenda neoliberal, e está mais voltada para a economia financeira e para o rentismo do que para o impacto sobre a chamada macroeconomia real, que é produção, emprego e renda. Supondo que o cenário pandêmico não existisse e a agenda do Guedes tivesse sendo implementada, eu acho que não teríamos um crescimento muito além de 1%, no máximo 2%. Isso não seria suficiente para permitir uma melhor qualidade de vida aos cidadãos.”
Reformas ineficazes
“Esse governo aponta para um projeto que é de desmonte, de relegar ao Estado o mero papel de regulador da economia. Sabe-se que isso só faz sentido em economias mais avançadas e maduras, onde você já tem garantida à população a um certo nível de qualidade de vida e bem-estar social, o que não é o caso do Brasil. O Brasil é um país com mazelas sociais históricas, e temos encontrado dificuldades em saná-las. Então, acho que a agenda liberal é “dar um passo maior do que a perna”. As reformas precisam, sim, serem feitas. Não sou contra as reformas política e tributária. Mas as reformas que o Guedes fez e, antes ainda, as que o Temer fez (Michel Temer, vice-presidente no governo de Dilma Rousseff, que assumiu a Presidência de 2016 a 2018) são ineficazes. Essas reformas não entregaram o resultado esperado.”
Tamanho do Estado
“O governo vai ter de investir e garantir um certo nível de serviços básicos e públicos. Em primeiro lugar, a saúde e, em segundo, a educação. Outra esfera de atuação importante terá de ser algo combinado, envolvendo diversas áreas de atuação do Estado, com políticas que garantam a manutenção e a geração de emprego. Do contrário, os problemas vão persistir, e correm grande risco de se agravarem. Não acho que vamos conseguir superar esse momento difícil se não olharmos para a saúde, a educação e o emprego. Não precisamos ter o Estado do bem-estar social escandinavo para que o ente público garanta, enfim, a sua finalidade principal. Todo e qualquer Estado deve garantir o mínimo de bem-estar à sua população. O governo que hoje conduz a atividade do Estado no Brasil não tem se preocupado com isso, não está atento ao bem-estar da população. A saída não é desconhecida. Quem estuda história, política e economia sabe que a maneira mais eficaz de escapar do círculo vicioso da pobreza, miséria e escassez são bons projetos educacionais. No entanto, estamos em um contexto de crise sanitária e econômica, tendo um governo que sucateou as universidades, propõe reduzir recursos públicos destinados à pesquisa, em uma visão obscurantista do mundo, visão que questiona e não confia na ciência. Isso é muito aflitivo.”
“Poderíamos fechar o MEC, é um elefante branco que não serve para nada", diz Luiz Felipe Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da PUC-SP
Contexto pós-guerra
“Se olharmos para a história, depois da I Guerra Mundial, da gripe espanhola e da crise de 1929, que os Estados Unidos apanharam bastante, o Estado cresceu. Porque assim a população se sentiu mais segura, mais assegurada das suas necessidades. Já vimos isso aqui no Brasil, na pandemia, com o Auxílio Emergencial. Porque, quando você tem uma parcela da população muito vulnerável, pobre e miserável, o Estado tem de aparecer para manter um certo nível e evitar uma desorganização social muito grave, como saques e roubos.”
Revisão de rota
“Apesar de todo contexto da crise por conta da pandemia, não acho que tenha como fazer uma revisão da agenda, no sentido de se acabar com a discussão do liberalismo no país. Estamos vivendo uma situação de exceção, que vai mudar em algum momento. Por outro lado, a situação de empobrecimento para uma camada que tinha recursos revela um momento de reinvenção. Muita gente passou a vender produtos remotamente e aprendeu a lidar com essa ferramenta. O que tem de diluir é a polarização política. O momento pede que os discursos sejam econômicos. Porque o Estado não vai poder ficar pequeno neste momento. O que eu quero dizer é que você não precisa criar mais ministérios e chegar a 39, por exemplo. Não é o que eu quero dizer e nem precisa acontecer. Como se viu, não foi preciso criar ministério para implementar o Auxílio Emergencial. Defendo que tudo isso poderia ser melhor organizado pelos Estados e municípios, e não ficar centralizado em Brasília.”
Fechar o MEC
“O problema é que Brasília fica com todo o dinheiro. Começa por aí. Se vamos pensar no papel do Estado, significa redistribuir a forma de usufruto da tributação. Porque o imposto vai para Brasília e volta. A questão é como fazer isso com igualdade, para que os Estados do Sul e Sudeste não fiquem com muito mais recursos, porque são os que mais produzem. Porque o problema, hoje, é que o dinheiro vai para Brasília, aí tem a corrupção, roubam, e a distribuição não ocorre. É preciso fazer como São Paulo tem feito, criar parcerias público privadas. Por exemplo, estabelecer uma parecia do Estado e da iniciativa privada para criar ferramentas de atenção à população vulnerável. Para aumentar a atenção à população, não precisa aumentar a folha de pagamento, com concurso público. Poderíamos fechar o MEC (Ministério da Educação), que continua a ser lerdo e burocrático. É um elefante branco que não serve para nada. Por que não se leva a gestão do MEC para Estados e municípios?”
Paradigma estrutural
“Grande parte desses ministérios existe para centralizar dinheiro aos políticos, que o distribuem nas regiões onde eles vivem. Por isso que, apesar de eu pensar nessa ideia, não acho que vai acontecer nunca. O que eu quero dizer é que não adianta apenas fechar ministérios. Mas você precisa ter um sistema burocrático mais transparente e simplificado, e isso levaria, naturalmente, a você diminuir ainda mais o número de ministérios. O tamanho do Estado tem a ver com o número de ministérios que servem para burocracia e dão dinheiro para muita gente. Há uma piada em Brasília, que é de assessores que ajudam a escolher acessórios como gravatas. Em meio a uma pandemia, vemos que os funcionários públicos estão defendidos, enquanto que a iniciativa privada arca com o ônus. Há uma inversão, porque o sujeito que está no mercado privado é hoje a população vulnerável e sem lugar de fala.”