A preocupação com o futuro da economia ressoa majoritariamente no discurso de empresários. Como em qualquer outra crise de grandes proporções, entretanto, é a classe trabalhadora a maior atingida e com menos perspectiva de retomada à estabilidade. Se para o dono de negócio a renda depende da produção e de decisões administrativas, para a mão de obra resta cumprir ordens na esperança de manter o emprego. Com a recessão garantida até para depois do controle da pandemia, o receio pelo risco do desemprego é tão rotina como o próprio expediente cumprido.
De acordo com a coordenadora do Observatório do Trabalho da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Lodonha Maria Portela Coimbra Soares, um dos efeitos — em médio prazo — diante do aumento de desemprego, será a expansão da chamada subocupação invisível, quando trabalhadores qualificados aceitam funções com remuneração inferior e abaixo de sua capacitação.
— Quando terminar a pandemia, tendo em vista que muita gente com mão de obra qualificada foi demitida, muitas pessoas poderão se sujeitar a trabalhar em uma atividade aquém de sua qualificação e, assim, haverá precarização no mercado de trabalho. Uma vez que passa a receber menos, achata também a renda média da região e do município — explica.
Levantamento realizado no ano passado pelo Observatório com a professora do curso de Economia da UCS Maria Carolina Gullo e alunos da disciplina Análise de Conjuntura e Cenários Econômicos apontou que, de 2014 a 2018, houve achatamento salarial de trabalhadores de seis entre oito setores da economia analisados. A redução salarial foi atribuída ao ajuste da mão de obra por conta da crise econômica. A tendência é de que esse cenário se agrave.
— Em Caxias, já víamos esse fenômeno antes mesmo da pandemia, desde 2015, quando tivemos a maior crise de desemprego recente. Desde lá já tinha redução da renda média da população — diz.
— Durante e depois de toda crise, é normal profissionais mais qualificados serem demitidos por conta do salário. Com isso, empresas contratam outros para as mesmas funções, mas com salário bem menor, até por não ter o tempo de empresa que tinha o trabalhador demitido. É um ajuste natural do mercado — avalia Maria Carolina.
Sobre os impactos da crise no desemprego, Lodonha acredita que os números possam superar, em 2020, o pior ano recente de baixas no mercado de trabalho, registrado em 2015, quando foram fechados 14.171 postos em Caxias.
O que restar
Entre os setores que devem ser mais atingidos, Lodonha cita a indústria (em torno de 40% da força de trabalho e mais de 50% da economia de Caxias) e segmentos de serviços. Com a eventual oferta maior de mão de obra, muitos devem buscar alternativas sem vínculo estável.
— Está havendo número muito grande de pessoas que trabalham em fábricas ou áreas de serviços que exigem expertise e ficaram desempregadas nos últimos anos e passaram a trabalhar como motoristas de aplicativos ou entregas. Basta perguntar para os motoristas o que eles faziam. Acredito que isso também vá aumentar ainda mais e, com isso, a renda dessas pessoas diminui consideravelmente — ressalta.
E surtirão os efeitos da reforma trabalhista
Outra tendência, na avaliação da coordenadora do Observatório do Trabalho da UCS, Lodonha Maria Portela Coimbra Soares, é que empresas passem a utilizar com mais incidência flexibilizações previstas na reforma trabalhista aprovada em 2017.
— Vai acelerar a utilização da flexibilização, como já está acontecendo com redução de jornadas e salários, que já estão amparadas na reforma. O que pode acontecer no chamado “novo normal” é os empregadores usarem dessa nova legislação a pejotização, onde a empresa não vai mais empregar e o trabalhador vai prestar serviço, que pode ser temporário ou prolongado. Isso já acontecia de forma mais lenta, mas o impacto da pandemia pode aumentar a utilização da flexibilização de trabalho — acredita.
Em termos de legislação, Lodonha não crê na possibilidade de amenizar os riscos ao trabalhador, uma vez que a reforma já foi instituída:
— A legislação está dada. A reforma trabalhista foi aprovada. Para os empregadores foi muito boa, para os empregados nem tanto.
Na visão da professora, a possibilidade de ser cotado no mercado será possível por meio da qualificação.
— A mão de obra no Brasil não tem qualificação formal. Agora, mais do que nunca, se não pegar qualificação, se não melhorar a mão de obra, a situação vai atingir mais o trabalhador informal e os MEIs (microempreendedores individuais), que, mesmo estando formalizados, terão mais dificuldades, assim como empregos domésticos e empresas familiares — ressalta.
Trabalhador deve priorizar bem-estar
Embora os eventuais ajustes possam beneficiar as empresas que contarão com mão de obra de qualidade em maior volume, a crise do coronavírus também deve mudar a dinâmica do mercado de trabalho, na visão da especialista em gestão estratégica de pessoas Alessandra Rosa.
— Sempre se falou que as pessoas são o ativo mais importante para as empresas, mas isso sempre soou como uma frase bonita para se ter nos valores, porém, agora, de fato, ela será um elemento presente no mercado de trabalho. Comando e controle já não funcionam, empresas que não perceberem isso não vão sobreviver — acredita.
O próprio desinteresse de funcionários em aceitar a rotina de trabalho em empresas pode ser outro fator crescente, segundo ela:
— Muita gente já me falou que não pretende voltar ao antigo modelo. Esse boom do trabalho remoto mudou muito a dinâmica entre empregador e empregado. Terá muita demanda por profissionais que trabalhem com projetos, vai ter muito mais CPNJ do que CPF em um mercado muito mais flexível.
Para Alessandra, mesmo trabalhadores de renda mais baixa estão refletindo sobre que critérios devem nortear sua profissão. A ideia de que o empregador pode aproveitar o alto volume de desempregados para oferecer salários menores sob a lógica de “não gosta, tem 10 na fila” deve deixar de ser aplicada.
— Pode pegar profissional bom, oferecer o que quer pagar e pensar: "Ele está precisando, então virá." Ele até pode ir, mas por um curto tempo, ou ele vai começar a trabalhar por projeto, ou vai virar um empreendedor. Qualquer tipo de profissão tem alternativas para se qualificar, as pessoas podem se capacitar de graça — diz Alessandra.
A possibilidade de sobrecarga também pode ser um tiro no pé. Enquanto que na visão de uma empresa uma pessoa desempenhar o trabalho de duas no futuro pareça uma boa ideia para diminuir o quadro de funcionários, fora da empresa, a imagem do empregador pode acabar sendo prejudicada:
— Esse profissional que precisa ficar numa empresa assim, ele está se questionando, ele comenta para a rede dele, para a comunidade, reclama das condições, e essas informações vazam, as empresas ficam marcadas e todo mundo evita trabalhar para elas.
Sonhos e formações desembocam na função de motorista de aplicativo
Formado em radiologia pela UCS, Diones dos Santos Pereira chegou a atuar na área, de 2013 a 2018, em Vacaria. Ao retornar a Caxias do Sul, há cerca de dois anos, não conseguiu se reinserir na profissão. Acabou se tornando motorista de aplicativo.
— É conveniente, pois é um trabalho que depende só da pessoa. Não depende de processo seletivo, você se oferece e começa a trabalhar, faz o horário que quer. É mais fácil do que entrar numa metalúrgica, por exemplo, onde não te contratam porque sabem que quando surgir uma vaga na área saio de lá, e isso se torna caro para eles — observa.
Como técnico de Raio X ganharia em torno de R$ 2,6 mil. Como Uber, consegue extrair, no máximo, R$ 1,8 mil, o que considera razoável, pois acredita que ganharia o mesmo trabalhando fora de sua área em uma empresa, mas sem a mesma flexibilidade de serviço. Por outro lado, Diones acredita que, após a pandemia, com a alta de desemprego e o eventual aumento de motoristas por aplicativo, a renda para quem trabalha com o serviço tende a diminuir:
— Digamos que a gente tivesse em torno de 10 mil corridas por dia. Para o aplicativo vai continuar 10 mil, mas vão distribuir o mesmo número para muito mais motoristas. Para a empresa não vai mudar nada, mas para nós vai diminuir nossas corridas e nossa renda — acredita.
Embora afirme que sempre soube como a profissão de técnico em Raio X era disputada pela reduzida demanda da função, a esperança de Diones destoa da maioria das demais áreas para o pós-pandemia.
— Como é área da saúde, pode aumentar a demanda e hospitais contratarem, porque exames eletivos não estão sendo feitos agora, a não ser casos de urgência e emergência, então, essa demanda reprimida deve criar vagas mais para frente — espera.
Quem também migrou para o transporte por aplicativo foi Dorian Freitas, em 2016, após 15 meses desempregado. Entre 2004 e 2006, chegou a ter remuneração de R$ 15 mil, gerenciando nacionalmente as operações de uma empresa de transporte de Curitiba, mas com o passar dos anos, no entanto, foi decaindo de ocupação.
Embora tenha buscado voltar à área de especialização, nunca mais conseguiu se reinserir no mercado de transporte de cargas. Em 2020, ele completa quatro anos como motorista de aplicativo. Antes da pandemia diz que chegava a faturar R$ 5 mil brutos, porém, colocando na ponta do lápis, o lucro líquido pelo trabalho rendia R$ 1,5 mil, ou seja, 90% abaixo dos R$ 15 mil que um dia recebeu.
— Nessas funções mais gerenciais de transporte de cargas se ganha bastante dinheiro se a pessoa sabe trabalhar. Sempre me qualifiquei, me formei em 2005, em Administração, fiz cursos. Desde que perdi o emprego nesse mercado até participei de processos seletivos, mas ofereciam salários muito baixos para a carga de trabalho, pela pressão e por não ter horário. Acaba sendo pior do que Uber — acredita.
Desde o surgimento da pandemia, ele comenta que o faturamento, que já era baixo, passou a ser menor como motorista:
— Nem parei para fazer a conta. O dinheiro que consigo uso para pagar a parcela do meu carro, e eu e meu pai nos ajudamos com o que sobra.
Ainda assim, tem esperanças de que, após a crise, as oportunidades possam ressurgir.
— O cara que é empresário e tem visão vai ter que se reposicionar, e na área do transporte se posicionar não se trata de um coelhinho correndo, é um elefante para se mexer. Ele precisa encontrar pessoas adequadas. Eu nunca deixei de acompanhar o mercado, de estudar, de me preparar para quando chegar essa oportunidade.
CENÁRIOS
> PARA QUEM MANTIVER EMPREGO
GARANTIAS SALARIAIS, COM MENOS BENEFÍCIOS
Mesmo que determinadas funções sejam categorizadas formalmente e tenham piso e salários respaldados por acordos, gratificações e benefícios podem ser reduzidos drasticamente até o ajuste financeiro das empresas após a crise.
HOME OFFICE
A mudança forçada do trabalho remoto acabou tendo resultados mais positivos do que muitas empresas esperavam. Portanto, parte dos postos deve ser mantida nesse sistema. O lado ruim é que, muitas vezes, trabalho remoto não delimita expediente. Dessa forma, horas extras não remuneradas por meio de contatos via e-mail ou WhatsApp podem ser uma sobrecarga inconveniente ao trabalhador.
SOBRECARGA
Empresa que trabalhava com 10 pessoas ajustou quadro para cinco e manteve a produção dificilmente vai repor todas as funções que tinha antes da crise. Por isso, quem aprendeu a trabalhar em dobro deve continuar se sujeitando a isso. O desgaste emocional dos funcionários e o aumento da rotatividade de trabalhadores insatisfeitos com as condições, entretanto, podem fazer mudar a visão do empregador, mas isso só a longo prazo.
> PARA QUEM PERDER O EMPREGO
GRANDE CONCORRÊNCIA
O alto número de demissões aumenta o número de desempregados e, naturalmente, torna a concorrência por vagas mais disputada. Quem achava difícil encontrar emprego antes deve ter ainda mais dificuldades agora e no futuro. Enquanto não consegue a reinserção, a dica é aproveitar para qualificar-se e, assim, tornar-se um trabalhador mais atrativo para as empresas.
SUBOCUPAÇÃO INVISÍVEL
Ganhava bem e foi demitido? A tendência é que a sua renda diminua drasticamente. Dependendo da função, sua profissão talvez fique com vagas indisponíveis por muito tempo, o que fará com que, enquanto não se reinsira na sua especialização, se sujeite a outros trabalhos que não dependam de capacitação e, por isso, sua faixa salarial deve reduzir consideravelmente.
TRABALHAR POR PROJETOS
A flexibilização deve se tornar mais recorrente em algumas áreas. Prepare-se para se ajustar a isso. Uma das possibilidades é se tornar pessoa jurídica (PJ) e passar a trabalhar por projetos. Não haverá garantia de estabilidade e nem os benefícios garantidos por vínculos empregatícios, mas sua renda pode aumentar conforme sua "cotação" no mercado e capacidade de acumular projetos paralelos.