O Primeiro de Maio pressupõe uma data símbolo para reiterar e reivindicar lutas trabalhistas. Por ser feriado, também preconiza dia de descanso para (a maior parte) dos trabalhadores. Neste ano, o repouso e resguardo domiciliar são quase obrigatórios em razão do confinamento recomendado devido à pandemia do coronavírus. Entretanto, ficar em casa não necessariamente significa relaxar da rotina de trabalho, pelo contrário, os tempos exigem reflexão e a inquietação para quem depende de renda para sobreviver e sequer sabe, mais do que nunca, diante dos efeitos da pandemia do coronavírus na economia, como será o dia de amanhã.
Celebrado em boa parte do mundo, o Primeiro de Maio foi estabelecido em 1889, durante o Congresso Operário Socialista da Segunda Internacional, em Paris. A data foi escolhida em alusão a uma greve geral ocorrida nos Estados Unidos em 1886, quando grupos de sindicalistas reivindicavam redução da carga horária diária de 16 horas para 8 horas, sem corte nos salários.
No Brasil, a adesão ao feriado ocorreu em 1924, e a primeira celebração foi em 1925. Noventa e cinco anos depois, o que motivou o movimento inspirador da data sofre uma subversão: se então trabalhadores lutaram para ter carga reduzida e salários integrais, atualmente, a classe trabalhista se vê obrigada a aceitar acordos de redução de jornadas de trabalho e de salários. A medida extraordinária decorre de tempos atípicos e de soluções impostas como alternativas únicas para preservar empregos e garantir a sustentabilidade de empresas no país, num momento dito "sem precedentes". Ainda assim, elas não significam necessariamente que o trabalhador não sofrerá prejuízos.
— É um momento sem precedentes por causa da pandemia, mas essa pressão em cima da retirada dos direitos e da desvalorização do trabalhador não é de agora. Começou um tempo atrás, na reforma trabalhista, que era para gerar empregos, mas suprimiu direitos, teve a terceirização que era para gerar empregos e suprimiu direitos. Na verdade, a pandemia é um ingrediente a mais nesta etapa que vivemos na desvalorização do trabalhador, do trabalho e supressão dos direitos. Infelizmente, no meio de uma situação já complicada para o trabalhador, surge mais um argumento para responsabilizá-lo. A pandemia agrava, mas só está no mesmo pacote que alega que o trabalhador "custa caro" e que "tem muitos direitos" — avalia o gerente regional da Secretaria do Trabalho e Emprego do Ministério da Economia, Vanius Corte.
Na esteira da defesa da retomada econômica de empresários do setor produtivo e de representantes políticos, como o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido), uma constatação se sobressaiu: o apelo da volta da força de trabalho. Segundo Vanius, a necessidade da mão de obra demonstra que o trabalhador exerce muito mais importância do que os agentes econômicos admitem.
— Agora pode-se percebe que quando se disse que não era para as pessoas trabalharem, isso gerou o caos. Demonstrou a importância que o trabalhador tem, que muitas vezes é desconsiderada. E o trabalhador pode perceber que é o elo principal da corrente da economia. Sem a força de trabalho a economia para. Talvez essa questão da pandemia sirva para isso, para ressaltar a importância do trabalhador, porque só de capital especulativo o país não vive. Se não tiver a pessoa produzindo, o país paralisa — ressalta.
Impacto incerto
Com a divulgação dos números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) suspensa, não há estimativa de quantos desligamentos ocorreram nos últimos meses e especialmente durante o período de pandemia no Brasil, nos Estados e municípios. Em Caxias do Sul, por exemplo, o Sindicato dos Metalúrgicos estima em torno de 500 demissões na principal matriz econômica da cidade no período que compreende o final de março e as primeiras semanas de abril. Ao todo, a entidade contabiliza 179 empresas da cidade que aderiram às medidas de suspensão de contrato de trabalho ou redução de jornada e salários.
Autovalorização como pensamento cultural
Para Vanius Corte, a preocupação desta vez nem deve ser somente com o futuro das relações de trabalho na eventual retomada. Ainda assim, prevê que o prolongamento da situação pode efetivar mais prejuízos com a ampliação de adesão às medidas de preservação de empregos implantadas pelo governo federal.
— Tem países que tomaram medidas diferentes e mais positivas, como proibir demissões neste período e os governos participarem mais ativamente no financiamento dos salários e manutenção dos empregos. Aqui não, aqui se diz que pode reduzir jornadas e salários, suspender contratos. Sendo que em todos os casos existe uma queda de salário e não proíbe a demissão. Insiste-se no discurso de que a manutenção de emprego deve ser prioridade, mas não existe política pública que diga isso — pontua.
A raiz do problema, acredita Vanius, está também na própria mentalidade da população, que acredita na necessidade de medidas amargas.
— Se o trabalhador se desse conta da sua importância, talvez pudéssemos reverter essa cultura de desvalorizar o trabalhador — acredita.
Momento de incertezas para Pedro e a família
No dia 20 de outubro de 1999, aos 22 anos, Pedro Dorizete da Silva Miguel saía de sua casa no bairro Fátima, zona norte de Caxias, e embarcava em um ônibus em direção ao primeiro dia de trabalho em uma metalúrgica no bairro Cidade Nova, na região oeste da cidade. Pelos 20 anos e seis meses que se seguiram, ele repetiu esse trajeto, de ida e volta.
No final de março deste ano, Pedrão, como é conhecido pelos colegas, teve sua rotina interrompida de forma inédita após o decreto de fechamento das empresas para prevenção da pandemia. Na volta do recesso forçado, no início de abril, uma nova surpresa: a empresa anunciou a demissão de 118 funcionários.
— Propuseram um acordo para 118 funcionários que decidiram demitir, queriam pagar em 36 vezes a rescisão. Não quisemos assinar (o acordo) por causa do histórico da empresa. Nunca depositavam o Fundo de Garantia (FGTS) e para ex-colegas que foram demitidos e aceitaram o acordo só foram pagas as primeiras parcelas, depois disso a empresa dizia para procurar a Justiça — relata Pedro.
Nas vésperas do Dia do Trabalho, Pedrão ficou sem muito o que ter a comemorar. Na última terça-feira, ele relatou a frustração.
— A gente comemora ter saúde, porque se for comemorar o trabalho em si ou o patrão não tem nem força de levantar. Então a gente reflete o que está passando e segue a luta. E temos de comemorar a luta de cada companheiro. A gente nunca vai ser abastado na nossa vida, mas não temos como ficar mal toda nossa vida. Porque a luta está aí, e a gente sabe que o mau tempo vem, mas vai passar — ressaltou.
Em meio à crise pandêmica e a notícias de incertezas de economia, Pedrão manifestava receio em como se virar nos dias próximos. Em uma casa de apenas três peças, moram ele, a esposa Andreia, e os filhos, Manuela, de três anos, Pedro Jr., 17, e Pedro Lucas, 15 anos.
— A situação está preocupante, minha mulher era professora em escolinha, mas a patroa dela não conseguiu segurar e colocou ela na rua. Dali uma semana, fui eu (demitido). A parte dela é o que vai ajudar. Ela vai encaminhar o seguro-desemprego e vamos tentar sobreviver assim. Vamos segurar o que der. Graças a Deus não pagamos aluguel, mas pagamos água, luz, tem contas que não tem o que fazer — projeta.
Nos mais de 20 anos de empresa, Pedrão conta que os R$ 2,4 mil que ganhava mensalmente só alcançaram esse valor em razão dos dissídios sindicais.
Reviravolta
Na noite de quarta-feira, o Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias e Região, o Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul (Simecs) e a Secretaria Regional do Trabalho e Empego conseguiram negociar acordo com a Microinox para que houvesse a reintegração dos funcionários e a suspensão de contratos por 30 dias, podendo ser prorrogado por mais 30. O mecanismo é previsto em medida provisória do governo federal, que divide pagamento dos salários dos funcionários com a empresa durante o período de suspensão.
_ Dá para respirar por mais uns três meses, estamos garantidos, vamos ter de onde tirar o sustento da família _ comemorou Pedrão em entrevista ao Pioneiro ontem.
Embora acredite que possa ser demitido após o eventual retorno, Pedrão se disse mais aliviado e com a esperança na Justiça do Trabalho e na atuação sindical restabelecida. Durante oito dias, integrantes do Sindicato dos Metalúrgicos acamparam em frente à empresa.
— Foi uma luta bem difícil, mas valeu a pena. O sindicato mostrou que ainda tem gente com empatia pelos outros. (O sindicato) conseguiu nos ajudar e bastante, eles (sindicalistas) lutaram como se fosse deles a demissão. Eu sempre apoiei o sindicato, nunca pensei que fosse precisar, e agora vou continuar apoiando mais do que nunca. O Dia do Trabalho já ganhou novo sentido, é um dia que vai ficar na história para mim, que seria bem difícil, mas que conseguimos dar a volta.
A reação emocional do trabalhador
Ainda buscando reverter a situação trabalhista, Pedro Dorizete da Silva Miguel, busca também se adaptar à desocupação depois de duas décadas se organizando a partir do trabalho.
— Sempre gostei de trabalhar. Agora só em casa até dá para achar umas coisas para fazer, mas entendo que pessoas fiquem com depressão. Trabalham a vida toda, aí tem pandemia, desemprego, tudo batendo na porta de uma hora para outra. Se o governo não ajudar, o pessoal entra em parafuso.
A percepção de Pedro se enquadra na análise de profissionais ligados à saúde mental. Para a professora e coordenadora do curso de Psicologia do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), Ana Zampieri, a parada brusca tanto em razão de demissões quanto ao confinamento imposto impactam diretamente no emocional dos trabalhadores.
— Muitas vezes reclamamos do trabalho e que o trabalho adoece, mas a falta de trabalho adoece tanto quanto. O trabalho organiza a nossa vida, levantamos em função do horário de trabalho, nos alimentamos em função disso, nosso lazer fica restrito em horários que não estamos no trabalho. Imagina de uma hora para outra perder essa condição de organizador da rotina? — reflete.
Ressalta também que a falta de reocupação com o tempo ocioso, as incertezas com relação à estabilidade, medo do futuro, da doença e apreensão sobre a situação familiar acabam sendo fatores cumulativos na pressão psicológica em situações como a crise atual.
— Tem uma outra condição que nos coloca numa situação mais complexa que é a nossa região, de Caxias, capital do trabalho. Trabalho tem conotação muito importante, então abrimos mão também de uma identidade social, como eu vejo Caxias parada... Ver portas das empresas fechadas dá muito medo.
A própria resistência de muitos trabalhadores ao isolamento, salienta Ana, indica ter sido influenciada por essa busca inconsciente de retomada de rotina:
— É a tentativa inconsciente de querer recuperar a condição que ele conhece. A reação é querer resgatar o status anterior, supondo que tudo volte ao normal. Não fazendo isolamento, voltando para a vida, tudo volta ao normal na visão dessa pessoa. Mas isso não vai acontecer, o mundo não está normal. É importante, por isso, que haja apoio para que essas pessoas consigam perceber que esse momento é passageiro.
Três dicas para o momento
Aceitar a situação: é uma condição que não está nas nossas mãos, não temos controle, e é preciso admitir isso. Não será a decisão própria que vai resolver algo. O contexto é dependente de decisões e organizações governamentais.
Reorganizar a rotina: de modo que se encontre sentido mesmo não estando no trabalho, seja pelo desemprego ou isolamento. Pense em que outras atividades consegue se ocupar.
Busque ajuda: grupos de psicólogos atendem online e alguns voluntariamente. Pra quem não der conta de se organizar ou se sentir ansioso, não há momento melhor de procurar apoio.
Na atenção, empresas podem se diferenciar
Não é possível estimar os impactos psicológicos da crise, mas já é possível percebê-los.
— A gente tem previsto um aumento muito grande em casos de ansiedade e depressão, mas também síndrome de pânico, que inclusive interfere nos próprios sintomas da covid, às vezes aquela falta de ar na verdade é síndrome do pânico. E também prevemos aumento nos casos de suicídio. A área da saúde mental está muito atenta às repercussões dessa situação e elas não são muito positivas — observa a professora e coordenadora do curso de Psicologia do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), Ana Zampieri.
Uma das certezas é que a mentalidade do trabalhador vai voltar diferente após a crise e isso deve influenciar na própria dinâmica dos ambientes de trabalho. Assim, Ana ressalta que é fundamental que empresas se estruturem melhor para oferecer auxílio psicológico aos empregados:
— As empresas fazem o que elas podem tentando sobreviver, tem a parte concreta de como pagar salários, como organiza a rotina, força de trabalho. Mas tem a parte subjetiva, que é como é que esse trabalhador vai voltar. Em que condições ele volta ou em que condições ele precisa ficar em casa. As empresas que conseguirem olhar para isso com sensibilidade e empatia maior sem dúvida serão empresas que daqui para frente terão diferencial. Quando as coisas retomarem de fato, serão empresas responsáveis socialmente e onde os trabalhadores vão estar felizes em pertencer e vão poder dizer que, no momento de dificuldade, a empresa não o deixou na mão. Portanto, empresas que dedicarem atenção a isso vão sair na frente.