Pouco resta hoje dos sinais do sinônimo de progresso que a malha ferroviária representou na história de grande parte do Brasil. Embora cidades ainda utilizem ou tenham desenvolvido e consolidado o modal de infraestrutura e transporte, em muitos lugares remanesce apenas o valor poético e imagético que trilhos e traçados abandonados ocupam na paisagem urbana.
É fato que a Serra Gaúcha não existiria como referência de prosperidade, não fosse a exploração da ferrovia, ocorrida no início do Século 20. Nesse contexto, destaca-se Bento Gonçalves, que neste sábado (10) celebra 100 anos da chegada do primeiro trem à estação do município, inaugurada em 1919.
E se a Serra não seria a Serra como a conhecemos, é difícil imaginar a existência de Bento, em toda sua representação produtiva e turística, caso não tivesse sido incluída no trajeto ferroviário, integrante da linha Porto Alegre-Caxias.
Na época, a cidade tinha apenas 30 anos de existência. Os moradores ainda faziam parte das primeiras levas de imigrantes italianos. Os traços culturais de perseverança e o anseio empreendedor, no entanto, já faziam a população reivindicar por condições que permitissem a prosperidade.
— Os imigrantes que aqui chegaram tiveram a sua dificuldade, mas tinham muita esperança. Porém, vinham do porto de Porto Alegre, até Montenegro, e via Rio Caí até a região. A partir daí, era uma trilha de 90 quilômetros. Em cima desta trilha foi traçada, em 1888, a primeira estrada carroçável — conta a historiadora Assunta De Paris.
A rota (denominada de Buarque de Macedo) começou a ser utilizada para transportar produtos, mas era de difícil acesso, conforme relata a pesquisadora:
— Não havia pontes ou como transpor lugares íngremes. A ferrovia estava chegando para ligar Porto Alegre a Carlos Barbosa, porém, existia interesse de comerciantes de Carlos Barbosa para não deixar transpor a ferrovia até Bento.
União pelo ramal
Segundo descreve, foi em 1914 que lideranças de Bento uniram-se e formaram a Associação Comercial (que serviria, posteriormente, de base para criação do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, o CIC-BG, e do Câmara de Dirigentes Lojistas). Esse grupo, em conjunto com empresas que se estabeleceram na cidade e notaram a dificuldade de escoamento das mercadorias (como Dreher e Mônaco) foram até autoridades para reivindicar que o ramal da ferrovia chegasse até Bento . Finalmente conseguiram por meio de uma companhia de Bruxelas (Bélgica) trazer a ferrovia com engenheiros que também montavam as estações.
A proximidade de diretores da companhia belga com o Império no Brasil facilitou a chegada de matérias-primas que não eram produzidas localmente, necessárias para implantação das ferrovias e do complexo da estação.
— Em 1919, a população era de 20 mil habitantes, sendo que 80% eram do setor agrícola e moravam na zona rural, poucos eram os que moravam na cidade. Mas todos ansiosos para que chegasse uma forma de fazer com que a economia tivesse mais valor para vender produtos. Foi inédito, histórico para a época. Nós não podemos imaginar como é um lugar sem meio de transporte para trazer os materiais e vender o produto que era feito pelos imigrantes. Tinha tudo produzido, mas não para onde vender — acrescenta a historiadora.
A inauguração da estação ocorreu em um domingo, no dia 10 de agosto de 1919. Bento e a Serra jamais seriam as mesmas.
Trilho do tempo
10 de agosto de 1919: Estação de Bento Gonçalves recebe primeiro trem.
1942: instalou-se com sede em Bento o primeiro batalhão ferroviário, que tinha sede no Rio de Janeiro, para fazer o traçado do tronco-sul. A partir de então, o escoamento sofreu significativa expansão entre Serra e centro do país.
1976: o trecho Carlos Barbosa-Bento Gonçalves parou de operar viagens com passageiros.
Anos 80: o poder público realizava passeios entre Jaboticaba e Bento Gonçalves (trajeto em sentido inverso ao de Bento-Carlos Barbosa). Porém, roteiro foi desativado no final da mesma década.
1992: retomada da linha, quando passou a ser operada, sob concessão, pela Giordani Turismo, o percurso de 23 quilômetros entre Bento e Carlos Barbosa.
1997: Rede Ferroviária Federal estabelece concessão para operação na malha ferroviária. Com isso, a Giordani Turismo passa a ser responsável pelo trecho concessionado e realiza as manutenções e reformas necessárias para continuidade de funcionamento.
A estação como ponto de referência
Uma vez efetivada a implantação da malha, a facilitação do transporte fez surgir naturalmente o interesse e a vocação pelo turismo.
— Muita gente da Capital vinha para ver as plantações de trigo, milho, hortifrúti, parreirais. Vinham para cá para comprar artesanato, leite, queijo, manteiga e salame. Pessoal da capital considerava a nossa região colonial, uma colmeia de gente que se unia para o trabalho. Conseguiram trazer para a nossa região a valorização do nosso agricultor — comenta a historiadora Assunta De Paris.
A projeção econômica foi tão notória, que o reconhecimento dos produtos produzidos na região chegou na Europa.
— Em 1925 (seis anos depois do advento da estação), nós estávamos presentes numa exposição em Turim, na Itália, com livro sobre 50 anos da imigração italiana, onde Bento teve destaque pelos produtos trabalhados na região colonial italiana — relata Assunta.
A alusão à "colmeia" se deu pelo próprio traçado urbano. Segundo explica a historiadora, a cidade era dividida em pequenos lotes rurais praticamente grudados uns nos outros.
Logo, a estação ferroviária tornou-se referência na cidade. De ponto de encontro a espaço comercial, tudo acontecia ali.
— Sempre foi muito movimentada. As pessoas preparavam seus produtos coloniais e iam ali vender. Era uma festa — comenta Assunta.
A segunda revolução do trem
Juntamente com Gramado e Canela, Bento Gonçalves é uma das principais referência de turismo no Estado e no País. Um dos atrativos mais conhecidos da cidade é a Maria Fumaça. Roteiro criado em 1992 pela Giordani Turismo, o passeio utiliza trecho de 23 quilômetros da ferrovia, entre Bento, Garibaldi e Carlos Barbosa, com uma locomotiva caracterizada com itens de valor histórico.
Artistas passam pelos vagões oferecendo a experiência da ambientação da história cultural da Serra Gaúcha, com corais de música italiana, apresentações de tarantela e músicas tradicionalistas.
No ano passado, mais de 350 mil visitantes fizeram o passeio, que neste ano já apontou crescimento de público no primeiro semestre. A operadora do roteiro hoje conta com 130 funcionários diretos, além de trabalhadores indiretos e mais de 30 artistas que se apresentam. Se hoje é referência na oferta de serviço de turismo, quando surgiu, há 27 anos, refletiu em parte o DNA que também prevaleceu nos primeiros imigrantes:
— Éramos inicialmente em duas funcionárias. Íamos para Gramado, abordávamos grupos de viagens os convidando para fazer o passeio. Em Bento, nós mesmas os recepcionávamos. Ninguém acreditou no projeto no início — comenta a diretora executiva da empresa, Andreia Zucchi.
A aparência desolada do que restava da malha ferroviária motivou, na época, observações desestimuladoras de quem achou um erro quando o empresário do ramo dos transportes Leonel Giordani manifestou interesse em reutilizar a estrutura.
— Foi um ato de coragem. As pessoas falavam para o seu Leonel, o proprietário, que ele era louco de investir em passeio de trem, nas estações que estavam abandonadas. Que ia até acabar com o negócio que ele tinha de ônibus urbano. Foi uma ideia corajosa, que com ajuda da própria prefeitura e de empresas como a Tramontina (que reformou as estações), gerou uma somatória que fez com que tudo desse certo — destaca Andreia.
E se a união novamente fez a diferença, os frutos, naturalmente, foram colhidos por toda a região:
— Em 1992, haviam 700 leitos, hoje tem 3 mil leitos no setor de hotelaria e temos muito mais restaurantes. Os próprios atrativos turísticos também, hoje se pode ficar vários dias que tem o que fazer em Bento. É muito visível crescimento na região — pondera a diretora executiva da Giordani.
O passeio
:: O passeio na Maria Fumaça pode ser feito durante o ano todo.
:: Valores e horários variam na alta e baixa temporada.
:: Informações e reservas no (54) 3455.2788 ou www.giordaniturismo.com.br.
Números
:: De janeiro a junho deste ano, a Maria Fumaça teve um crescimento de 6% em número de passageiros, comparado com mesmo período de 2018.
:: Em 2018, a Giordani atendeu mais de 1,5 mil agências de turismo de todo o Brasil, incluindo internacionais.
:: No mesmo ano, a Maria Fumaça levou mais de 350 mil passageiros.
Leia também
Decretada falência do Grupo Voges de Caxias do Sul
Rede de franquias inaugura sua 4ª academia em Caxias do Sul
1ª Comenda Mérito Raul Randon é entregue em Caxias