É provável que nem Darci, nem Andi ou Neri sequer imaginassem, na sua infância vivida nos anos 1940 no distrito de Tainhas, em São Francisco de Paula, que o amigo que completava o quarteto pisaria, cinquenta anos depois, no tapete vermelho da Cerimônia do Oscar, em Los Angeles. Autor de O Quatrilho, cuja adaptação para o cinema concorreu a Melhor Filme Estrangeiro em 1996, o escritor José Clemente Pozenato faleceu na última segunda-feira (25), aos 86 anos, deixando um legado que vai muito além da obra-prima que o consagrou para além de qualquer fronteira.
Embora tenha crescido na região dos Campos de Cima da Serra, perto de uma serraria que pertencia ao pai dos três meninos citados no início do texto, conforme conta em uma de suas crônicas, Pozenato veio a se tornar o grande narrador da saga dos imigrantes italianos que colonizaram a Região da Uva e do Vinho, onde se instalaria apenas em 1966, para morar em Caxias (embora já frequentasse a cidade desde os 12 anos, como aluno do ginásio e secundário), onde viveu até o último dia. Em sua trilogia de romances históricos, iniciada com O Quatrilho (1985), seguida de A Cocanha (2000) e encerrada com A Babilônia (2006), Pozenato descreveu os imigrantes italianos e seus descendentes sem se deixar levar por discursos edificantes, mas sim preocupado em dar às suas personagens a verossimilhança das grandes obras realistas.
_ O grande diferencial do Pozenato é que ele olhou para a história da imigração com um olhar não de exaltação de valores e de certos discursos que prevalecem na região, mas com um olhar muito humanizado. No sentido de reconhecer que existem certos aspectos que devem, sim, ser elogiados, mas preocupado também em mostrar esse imigrante como um ser humano comum, como um sujeito que também é invejoso, que é materialista, que é preconceituoso, como qualquer ser humano que tem suas virtudes e defeitos. Não por acaso O Quatrilho foi um livro que enfrentou resistência (por ser uma história de traição entre casais) _ destaca o coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras e Cultura da UCS, Márcio Miranda Alves.
Alves pontua ainda que nesta que a terceira fase da carreira literária de Pozenato _ após o começo com a poesia nos anos 1960, passando para os romances policiais nos anos 1980 _ o coloca num lugar reservado a autores que produziram literatura histórica de referência sobre o Rio Grande do Sul:
_ Vejo nessa trilogia de romances históricos, que na minha opinião marca o ápice de Pozenato como escritor, um alinhamento a essa tradição do romance histórico realista no Estado, junto de Erico Verissimo, Tabajara Ruas, Josué Guimarães, Letícia Wierzchowski. Cada um destes mirou o seu olhar para uma determinada região ou etnia, sendo que Pozenato foi quem se debruçou sobre a imigração italiana na Serra.
PROFESSOR MARCANTE
É impossível tentar explicar ou resumir a grandeza de Pozenato, contudo, olhando apenas para sua produção literária, mesmo que esta seja grandiosa por si só. Vinculado por toda a vida adulta com a Universidade de Caxias do Sul, como professor e pesquisador foi figura basilar na construção do mestrado em Letras e Cultura (à época, Letras e Cultura Regional). Amiga e colega desde os anos 1960, a professora Vitalina Maria Frosi, titular do curso de Letras da UCS, recorda com carinho e emoção o início da trajetória de ambos como docentes:
_ Iniciamos nossa carreira de docentes da Universidade de Caxias do Sul em fins da década de sessenta. Carentes de conhecimento, mas detentores de grande vontade formamos um grupo para estudo a ele dedicando horas vagas e fins de semana. Não medíamos sacrifícios. Naquele tempo, o acesso a meios culturais era precário, quase inexistente. Os livros eram nossa defesa, líamos textos, interpretávamos teorias, refletíamos sobre elas, sempre nos beneficiando de sua capacidade. Pozenato era tranquilo, discreto, incansável, dedicado e capaz, generoso, compartilhava sem reservas seu conhecimento. Foi um tempo de boas amizades, de perseverança, de luta e persistência. Pozenato era nosso mestre de verdade.
Ao definir o amigo como "um pequeno grande homem, intelectual gigante e escritor excepcional", Vitalina considera que Pozenato seguirá, após sua partida, o caminho de perpetuação dos gênios.
- De uma forma ou de outra, Pozenato permanece em nosso meio como componente basilar do patrimônio cultural, como figura exponencial do processo por ele instaurado aqui e para alem de limites geográficos. Esse é o destino dos gênios: continuarem vivos de modo universal, porque seu trabalho, sua influência e edificações se perpetuam. E esse é o destino de Pozenato, que continuará a moldar o mundo, a engrandecê-lo, a torná-lo melhor e, sobretudo, a inspirar gerações futuras. Seu ensino aos acadêmicos foi transformador e, por isso, constitui um forte elo na corrente do progresso social, humano e cultural. Sua presença não cessa com seu silêncio físico, ele permanece de múltiplas formas. Essa sua permanência é uma forma de imortalidade.
Ps: a crônica "A vida nas serrarias da Serra", em que Pozenato compartilha histórias da infância, pode ser lida aqui.