Muitas frentes de trabalho e todas com funções vitais para dar suporte a tanta gente que perdeu parentes, amigos e vizinhos, suas histórias e patrimônio. A rede imensa de voluntários e profissionais que se formou desde que o Rio Grande do Sul começou a enfrentar a catástrofe climática causada pela chuva, a saúde mental dos envolvidos surge como tópico de discussão e um importante alerta.
Quem tanto cuida está sendo cuidado por quem? Tem alguém se preocupando com as pessoas que estão na linha de frente em um dos momentos mais delicados que o Estado já viveu? Na Serra, o tema é tratado com toda a atenção necessária por diversos segmentos acostumados a lidar com cenários como esse.
A prioridade são as pessoas que se dedicam e presenciam cenas, muitas vezes pesadas e com potencial para deixarem traumas, para que elas não se esqueçam do próprio bem-estar. A busca pelo equilíbrio pessoal, mesmo em tempos de crise, é vital, dizem os especialistas.
Profissionais caxienses atuando em todo RS
Uma das estruturas que atua na assistência de quem cuida dos desabrigados e demais atingidos pela chuva é de Caxias do Sul, mas estende a atenção para todo o Estado. Especializado em lutos e perdas, o Instituto de Psicologia Luspe coordena equipes de trabalho espalhadas na Região Metropolitana de Porto Alegre, Serra e outros áreas atingidas.
Atualmente com 35 profissionais, o grupo é chamado para trabalhar em fatalidades de grande vulto, casos do acidente aéreo da TAM, em São Paulo, no ano de 2007, e o incêndio da Boate Kiss, Santa Maria, em 2013. Agora, todos os membros estão em atendimento a vítimas da maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul.
Integrante do corpo clínico do Luspe, a psicóloga Kátia Gazzola Viana, com 37 anos de experiência em saúde mental e especialização em luto, além de emergências psicológicas, tem acompanhado de perto a mobilização das colegas nos episódios recentes. Ela revela que a assistência para quem está na linha de frente é uma das principais ações desenvolvidas.
— Existe todo esse trabalho focado nos desabrigados, mas também nas equipes de linha de frente, em todos os sentidos. Cuidado é uma rede. No Luspe, a maior parte da demanda é online, vindo de tudo que é lugar. Empresas solicitando para falarmos com os colaboradores atingidos, uma grande rede de farmácias que encaminhou 900 funcionários para atendermos, uma cooperativa financeira aqui da Serra também nos procurou. Porque envolve tudo. A perda das raízes, da referência. As pessoas foram abaladas na sua autoconfiança. Precisamos ajudar a restabelecer esse processo de confiança, de voltar à rotina em meio ao caos — pontua Kátia.
Equilíbrio necessário à linha de frente
Todo atendimento sem acompanhamento e sem autocuidado pode ficar comprometido. A avaliação da psicóloga vai ao encontro do que o Instituto busca trabalhar nas orientações. Para Kátia, olhar para si mesmo com tantas pessoas em situações de risco é uma forma de garantir o equilíbrio entre os campos biológico, psicológico, social e espiritual, para cada um poder seguir prestando o serviço ao qual se propõe. Nesse sentido, três etapas são respeitadas na evolução da crise:
— O primeiro momento chamamos de descompressão, para descongestionamento desse momento. O segundo é a instrumentalização, fazer com que os envolvidos consigam fazer os atendimentos, que geralmente focamos nas lideranças. E um terceiro é avaliar se a pessoa está em condições, porque não é todo mundo que tem o perfil para ir para a linha de frente — ressalta.
Entender as próprias limitações e trabalhar para aceitá-las, para a profissional, é outro ponto importante a ser exercitado dentro do espectro do autocuidado.
— Tem gente que está na linha de frente e que volta completamente desorganizado psiquicamente. Por isso o cuidado. Não é todo mundo que tem as características para estar nessa situação. Há outras formas de auxiliar. Cada um com as suas habilidades, com as suas competências, e cada um fazendo muito dentro da sua área — avalia.
O alívio que o acompanhamento traz
Quando as cenas vividas pela comunidade de Galópolis, em Caxias do Sul, foram conhecidas por todos, depois dos estragos causados pela chuva, umas das preocupações da rede municipal de saúde dizia respeito a como os moradores e trabalhadores locais reagiriam ao impacto gerado pelas perdas de vidas e de suas histórias. A primeira ação de acolhimento e orientação coube à psicóloga e gerente de Recursos Humanos da Secretaria da Saúde, Paula Lemos.
Recentemente, a profissional esteve com agentes comunitárias da Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade, que são as responsáveis pelos atendimentos domiciliares. A atividade, segundo Paula, foi muito mais para ouvir e tentar tranquilizar as agentes durante esse momento tão delicado.
— O meu papel foi trabalhar a questão individual e o sentimento de cada uma e orientar na abordagem. Foi muito natural. Elas aguardavam com ansiedade. Foram bastante comoventes os relatos. Todas falaram do alívio que sentiram em dividir com alguém. Porque tinham a expectativa e o medo de não saberem o que iriam encontrar nas famílias, qual a reação, se iam querer receber. E o receio de se mostrarem fortes. Eu entendo que não precisa disso. Você tem de estar lá como apoio. E se o teu apoio for abraçar, sem dizer uma palavra, basta — revela a psicóloga.
A desafio de manter a rotina em meio ao trabalho intenso das últimas semanas não é problema para Paula. Apesar do envolvimento profissional e emocional com as equipes da secretaria, ela fez questão de seguir com o autocuidado.
— Eu mantive a terapia pessoal, a análise e as minhas atividades. Tem sido bem atribulado aqui na secretaria. Não teve um setor que não foi requisitado, principalmente o pessoal da enfermagem, o pessoal da UBS. Mas estou tentando seguir com a rotina — conta.
Após os resgates, o retorno à normalidade
Há poucos dias, os bombeiros Jean Michel Dalcin e Fábio Aguirres Gonçalves estavam salvando vidas em Caxias do Sul, no Vale do Taquari e também no município de Rio Grande, na Zona Sul do Estado. O ritmo frenético de resgates e plantões diários praticamente ininterruptos não permitia momentos de cuidados pessoais. Até o descanso ao dormir é feito vestindo o uniforme pronto para qualquer chamada.
— É plantão de quase 24 horas. Nós chegávamos no quartel, dava um intervalinho, umas 3 horas, e dormíamos. Fora isso, era ocorrência, ocorrência, ocorrência. Não tem tempo para falar com a família, não tem tempo para mais nada. Não existia mais nada. Alimentação eram os voluntários que faziam e comíamos quando dava tempo — afirma Michel.
De volta para Caxias, o soldado de 36 anos revela que o único suporte em meio ao caos era saber que a família estava a salvo em casa. Casado e pai dos meninos João Victor, 10 anos, e Miguel Henrique, 2, ele conta que ocupava as raras folgas com vídeo chamadas com quem estava longe. Sobre a busca por um acompanhamento psicológico profissional, Michel admite certa resistência.
— É difícil para nós irmos atrás de ajuda psicológica. O militar cria uma espécie de bloqueio. Ele absorve a situação e aprende a lidar. Acabamos dividindo normalmente com a esposa. Conta do trabalho, mas não leva o mais pesado. Mas já é um escape, vai aliviando aos pouquinhos. Graças a Deus, o nosso convívio no quartel, no dia a dia, é um ambiente de família. Conversamos, brincamos. Isso descarrega. Só que são cenas que não saem de ti vão estar sempre ali — confessa.
Embora com a situação bem similar à do colega, o também soldado Aguirres, 43, afirma que avalia a possibilidade de procurar terapia, e reforça que a prática de esportes fora do ambiente de serviço é a maneira que encontra de proporcionar a si mesmo mais qualidade de vida. Contudo, a sensação de prontidão causada pelo cenário atual, incomoda inclusive as atividades pessoais.
— Eu gosto de correr, treino para maratonas. Mas quando voltamos de resgates assim, fica o sentimento de parecer errado pensar em si e não estar no quartel, esperando para ser chamado. Por isso eu penso em fazer terapia. Com a maturidade, tenho pensado mais nisso. Eu sei que funciona, mas nunca fiz — salienta.