Com 337,9 mil veículos emplacados, segundo a Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade Urbana (SMTTM) e 463,3 mil habitantes, de acordo com o último censo do IBGE, Caxias do Sul é uma cidade em movimento. O trânsito de ônibus, automóveis, motocicletas e caminhões é constante e faz parte do cenário urbano. Nas calçadas, pedestres apressados compõem o retrato, principalmente da área central, onde vias largas de três pistas dão vazão ao fluxo dos veículos.
Quem observa esse cenário, que interliga personagens que parecem correr de um lado ao outro, com maior ou menor fluxo, a depender do horário, pode concluir que Caxias não para. Parece que os moradores daqui não se permitem a conviver em comunidade ou a usufruir dos espaços públicos da cidade. Por que isso ocorre?
Estudiosos da relação entre as pessoas e a cidade onde vivem, entendem que praças e parques deveriam funcionar como áreas de respiro em meio ao ambiente estéreo dos prédios. Quando o assunto é debatido, seja numa mesa de bar ou mesmo nas esferas de poder, há quem defenda o centro com seu enfoque mais comercial, dando vazão aos consumidores. Contudo, há quem perceba na Praça Dante Alighieri um potencial oásis urbano, que poderia ser melhor explorado.
Em dezembro, por conta das celebrações natalinas o cenário mudou. Se durante o ano todo, a Praça Dante é mais um lugar de passagem do que convívio, principalmente à noite, com a atual iluminação e decoração natalina e com uma programação constante de shows e espetáculos, mais pessoas têm visitado e permanecido por ali. Os mais entusiasmados diriam que isso demonstra como a população está sedenta por ocupar os espaços públicos e só falta um empurrãozinho.
Por outro lado — e confirmando ainda mais o coro dos entusiastas — há quem tenha um carinho especial pela Praça Dante ao longo do ano todo e, inclusive, mantenha cadeira cativa por ali. É o caso da família de Gelson Oliveira, 49 anos. Para ele, a esposa Letícia Rocha, 42 e a filha Antonela, 5, a praça é o lugar favorito deles em Caxias. Eles se mudaram de Porto Alegre para cá há cinco anos.
— É o lugar que mais frequentamos em família, trouxemos o patinete, porque o espaço é bom para manter a Antonela no campo de visão. As cadeiras estão sempre no carro, caso todos os bancos da praça estejam ocupados e quando recebemos visita de fora trago aqui para que conheçam. Me sinto bem tranquilo na praça —conta Oliveira.
Celebrações e conquistas
Historicamente, Caxias tem na Praça Dante Alighieri um lugar simbólico e emblemático. Num passado remoto, do tempo das fotografias em preto e branco, de conversas animadas na saídas dos cinemas que a circundavam, o convívio das pessoas na praça era mais assíduo. A primeira transmissão à cores da televisão brasileira, por exemplo, ocorreu justamente ali na Rua Sinimbu, na cara da Praça Dante. Atualmente, o movimento é maior em períodos de conquistas do mundo da bola de torcedores papos e grenás, ou ainda na comemoração de vitórias eleitorais em pleitos para prefeito.
Apesar desse manancial, arquitetos e especialistas, defensores de uma paisagem urbana que contribua para a convivência dos cidadãos, apontam que reter público na praça central não deveria ser responsabilidade apenas de programações ou decorações especiais, como esta de agora, natalina. Tampouco, restrita à celebrações cívicas ou esportivas. Condições dadas pelo poder público quanto a iluminação e segurança são fundamentais para incentivar que as calçadas sejam utilizadas para além de um caminho de passagem. A ponderação é de Madeline Juber, gestora de marketing do Vivacidade, laboratório de ativações urbanas, com foco em ações para promover uma cidade mais viva, humana e convidativa.
— Considerar que esse centro é ativo apenas a partir da realização de eventos é uma miopia. É preciso ter um olhar a partir do dia a dia e das interações que acontecem, de forma orgânica, entre os personagens da cidade. E, certamente, o poder público, empresarial e os próprios cidadãos podem propor e realizar ações para incentivar tais interações — defende Madeline.
Conceito de Regeneração Urbana
A arquiteta civil e doutora em Urbanismo, Giovana Ulian defende o conceito de regeneração urbana. A proposta, em essência, dá conta de ressignificar os espaços para que estes sejam ocupados pelas pessoas no pressuposto de uma melhora da qualidade de vida e da inter-relação da comunidade com esses espaços. Para que isso ocorra, não há uma receita exata e não acontecerá da noite para o dia, reconhece Giovana.
— As pessoas gostam de estar na rua, mas não vamos passar a limpo a cidade de uma vez só. Temos que ir criando “oásis urbanos”, pequenos espaços que passem a ser exemplo para outros e, à medida que conquistam as pessoas, vão irradiando e ampliando sua atuação.
Motivar lideranças comunitárias a fazer o que o poder público não faz é, para Giovana, um dos caminhos mais simbólicos. E dessa forma, outro conceito é lembrado, o de “zeladoria compartilhada”, que trata sobre o apreço dos moradores pelo local onde vivem e os espaços que frequentam. Para ela, é preciso conquistar desde moradores a comerciantes a cuidarem das ruas em frente às suas casas e empresas:
— Precisamos estimular que a qualificação seja também gerida pela comunidade. Ando pelo Brasil todo, já atuamos em três Estados, e as prefeituras têm braço curto. O poder público precisa facilitar, mas não é quem bate o bumbo. Não se trata de adotar canteiros, mas de ter gente envolvida no olhar do cuidado. Só teremos espaços regenerados se despertamos a vontade de ter essa teia de relações que esteja continuamente se fortalecendo em um cuidado mútuo — afirma.
Giovana vai além e provoca uma outra reflexão, que perpassa o zelo pelo lugar. Ela entende que ações como a diversidade de atividades e o funcionamento estendido do comércio também contribuem para o que ela chama de vida em comunidade mais saudável.
— Um espaço para ser vibrante precisa de moradores e não pode ter só farmácia. As atividades, de preferência funcionando até mais tarde, e com mistura, relacionadas também com alimentação e se possível algo de entretenimento, como uma agenda de eventos contínua e direcionadas a todos os públicos. A saúde de uma cidade está relacionada à mistura de pessoas de diferentes idades, desejos e classes sociais. No fim das contas, se não conseguirmos juntar tudo isso e promover esse mix, a coisa pode não funcionar.
No passado, vias eram exclusivas para pedestres
Derivada do espanhol peatón que quer dizer pedestre, vias peatonais são exemplos de locais que restringem a circulação de veículos e criam espaços com opções de descanso e lazer. Caxias já teve sua via de pedestres na região central. De 1979 a 2003, a Av. Júlio de Castilhos, entre as ruas Marquês do Herval e Dr. Montaury, era de uso exclusivo das pessoas, inclusive com um espaço de recreação para as crianças e até pista de patinação.
Inaugurada na gestão do então prefeito Mansueto de Castro Serafini Filho, em 1979, a extensão da então Praça Ruy Barbosa estimulava o convívio das pessoas. Segundo Serafini, o projeto era ainda mais audacioso, mas a resistência do comércio local travou a ampliação do traçado.
— Meu pai morava em Curitiba e por lá era um sucesso, tinha oito, nove quadras com o povo na rua, a ideia veio daí. O plano era fechar a Júlio, desde as ruas Alfredo Chaves até a Garibaldi, mas com a polêmica toda não demos seguimento. No tempo que ficou fechado, era impressionante, ficava cheio, mas depois que abriram a avenida para os veículos, a gurizada ficou sem ter aonde ir — recorda.
“Tem coisas em Caxias que historicamente são polêmicas”, diz vice-prefeita
Em 2003, na gestão do prefeito Pepe Vargas, os veículos retornaram a transitar no trecho da Av. Júlio, posição que permanece até hoje em dia. Atualmente, o trânsito é fechado sempre às sextas-feiras, em um dos sentidos, para a realização da feira Ponto de Safra. Da administração atual, a vice-prefeita Paula Ioris defende que a Av. Júlio, na extensão da Praça Dante, volte a ser ocupada pelos pedestres.
— É uma percepção minha, eu acho que cai de maduro, e é uma questão sempre polêmica, mas penso que ali teríamos que ter um espaço muito bonito para as crianças, para as pessoas conviverem, porque uma coisa puxa a outra. Mas tem coisas em Caxias que historicamente são polêmicas. O problema da segurança é resolvido também com ocupação, mas esse tema não encontra consenso — pondera Paula.
O debate sobre a utilização da quadra central, de acordo com a vice-prefeita, não está em discussão atualmente na prefeitura, mas a preocupação em ocupar os espaços tem, segundo ela, posição clara do poder público para que a cidade estabeleça mais lugares para o convívio entre as pessoas.
— Temos um calendário de eventos, Feira do Vinho, Feira do Livro, Caminhada para Jesus, Parada Livre, Semana da Consciência Negra, Natal e outros, mas podemos ativar ainda mais. O cercamento eletrônico e os investimentos em iluminação pública podem atrair essa consciência de que a praça ativa depende da comunidade — frisa Paula.
Cenário de acontecimentos históricos
De manifestações políticas à comemorações futebolísticas, a Praça Dante Alghieri é palco de encontros e de acontecimentos históricos. Parada Livre, Feira do Livro, Marcha para Jesus e Bençãos de Natal dos freis capuchinhos, por exemplo, ocorrem todos os anos no coração da cidade. O Almanaque resgatou alguns desses momentos marcantes.
Confira na galeria abaixo: