À convite do Almanaque, autores da Serra escreveram crônicas destacando personagens que marcaram suas vidas em 2023. Os convidados foram Patrícia Viale, Nil Kremer, Valquíria Vita, Marcos Mantovani, José Clemente Pozenato e Douglas Ceccagno.
Leia a seguir o texto do editor e escritor Marcos Mantovani:
Meu personagem do ano é...
Ao longo de 2023, devido a um projeto pessoal e não remunerado de fotoetnografia, eu conversei com muitas pessoas nas ruas. Em paradas de ônibus, ciclovias, estações de metrô, feirinhas, quebradas não turísticas. Isso em quatro cidades, lugares com 470 mil habitantes, 1,3 milhão, 6 milhões e 12 milhões.
Puxei dezenas de conversas, ou minientrevistas, sempre com uma pessoa de cada vez e sempre dentro dos parâmetros de tom e intimidade que cada uma impunha ao nosso diálogo. Falei com a chef, o sem-teto, a doula, o reciclador, a anarquista. Cada uma dessas pessoas me afetou de algum modo. Me modificou. Todas elas. Mas já que neste texto preciso escolher só uma, eu escolho a Sofia Rigotti.
Entrevistei Sofia em janeiro, em Caxias. Foi tomando uma limonada suíça que eu escutei histórias sobre as telas dela com tinta acrílica, sobre os desenhos com nankin e também sobre seu transtorno afetivo bipolar do tipo 2, que faz com que Sofia seja neurodivergente, ou neuroatípica, palavras que são irmãs de neurodiversidade.
Eu poderia escrever aqui sobre o bullying, os antidepressivos, as batalhas solitárias nos túneis do sistema nervoso. Eu poderia escrever sobre o cabo de guerra entre os episódios de depressão e euforia, ou sobre o preconceito que ainda grassa à boca cheia por causa da desinformação e do obscurantismo. Mas hoje quero falar sobre Eloá, a personagem que Sofia criou.
Quando vi o primeiro desenho, Eloá estava ladeada por um girassol e pelo logotipo da neurodiversidade, finalizado em um glitter holográfico. Nessa hora, eu intuí com força que Eloá podia ser muitas coisas, sobretudo um repositório, uma representação em que Sofia projeta o que estiver sentindo.
O fato é que a personagem Eloá usa abafadores de som, como Sofia, que ao longo dos seus 19 anos desenvolveu uma hipersensibilidade a certos ruídos, e é por isso que hoje, em algumas ocasiões, ela precisa tapar os ouvidos para o mundo.
O outro fato é que (já contei isto para algumas pessoas) entrevistar Sofia acabou me instigando a adquirir um desses abafadores de som, então eu dei uma pesquisada na internet e comprei um Muffler 3M vermelho idêntico ao dela, que, olha só, está sendo bem proveitoso para mim em várias situações, já que o direito à escolha de não ouvir o que vem de fora me deixou mais autoconsciente a respeito de alguns aspectos meus, como por exemplo dessa necessidade de às vezes entrar em ilhas de introspecção.
Obrigado por tanto, Sofia. Você é a pessoa que eu homenageio em 2023.
MARCOS MANTOVANI é editor. Escreveu os romances “Borboleta Nua” (2013), vencedor do prêmio Vivita Cartier, e “Clandestinidades” (2020). Tem mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade pela UCS.