Em tom de neblina, que traz um certo charme ao inverno na Serra gaúcha, se encerra neste final de semana a série De Manta e Cuia 2023, publicação do Jornal Pioneiro e GZH. Durante a estação mais fria do ano, a proposta, que se renova a cada ano, é mergulhar nesse universo particular, tão característico da nossa região e discorrer sobre as simbologias implícitas e as peculiaridades.
Na abertura, em junho, o tema foi a lã de ovelha, que tece memórias e suscita lembranças através do tempo, da ancestralidade à contemporaneidade. Seguindo por essa trama, a segunda reportagem, publicada em julho, abordou o fogo, também como elemento simbólico do inverno na Serra. E fechando esta edição da série, a neblina.
Como disse o filósofo Heráclito de Éfeso, (540 a.C. a 470 a.C.) invocado pela reportagem para falar do fogo: “A natureza ama esconder-se”. Esconder-se na névoa de uma neblina, também conhecida por aqui como cerração. Ou, como escreveu o filósofo e escritor Jayme Paviani, no poema Travessia: “A neblina nos ombros da montanha”.
A neblina, que inspira fotógrafos e artistas, como o Bruno Todeschini e a Patrícia Viale, encanta o olhar e provoca uma certa nostalgia em tons de melancolia. Contudo, quando a cerração invade estádios de futebol, pode provocar a paralisação de uma partida ou até o seu adiamento. E foi justamente isso o que ocorreu no dia 7 deste mês, no Alfredo Jaconi, em jogo pelo Campeonato Brasileiro da Série B.
Se atrapalha uma partida de futebol, o que dizer do pouso e da decolagem de aeronaves? Maurício Loreto D’Avila, diretor do Aeroporto Regional Hugo Cantergiani, de Caxias do Sul, revela que dos 750 voos entre abril e agosto deste ano, 82 deles foram cancelados por conta do clima. São visões diversas sobre o mesmo tema, a neblina, que pode vir com força e tomar uma cidade de uma hora para outra.
— Às vezes, quando amanhece, você olha pela sacada do prédio e não vê nada, aí chega no Centro de Treinamento e continua não vendo nada, e daqui a pouco o sol abre e o tempo fica bom — revela, em tom de brincadeira, Reginaldo Lopes de Jesus, lateral direito do Juventude, natural de Salvador.
Como se forma a neblina?
A neblina, também conhecida aqui na região por cerração, é uma nuvem que se forma próximo ao solo, impedindo que as pessoas enxerguem a uma distância maior do que um quilômetro. Por esse motivo, o evento também pode gerar problemas em rodovias e aeroportos. Para que se forme, é necessária a combinação de algumas condições, como a queda da temperatura e uma grande quantidade de umidade na atmosfera.
A neblina costuma ocorrer nas primeiras horas do dia, quando as temperaturas mínimas ainda estão baixas. Apesar de ser comum no inverno, principalmente na Serra gaúcha, o efeito climático também pode ser registrado no verão, por exemplo. Para que isso ocorra, deve haver uma queda brusca na temperatura, ocasionada por uma diferença expressiva entre a máxima do dia anterior e mínima da madrugada ou da manhã do dia seguinte.
“A névoa acrescenta um certo charme às fotografias”
A neblina é um fenômeno que, de forma intencional ou não, acaba aparecendo com frequência na rotina de quem registra imagens por essa região do Estado. Seja como o motivo principal, apelando para critérios estéticos, ou como consequência do clima no momento em que o foco era outro assunto, a névoa acrescenta um certo charme às fotografias.
Uma cena tomada por nevoeiro, evoca sensação de mistério, transformando mesmo os ambientes mais conhecidos, em uma versão um pouco mais abstrata. Já na parte técnica, existem alguns desafios para se captar uma boa imagem. A falta de contraste talvez seja o maior deles, pois dificulta um foco mais preciso no objeto ou ação escolhida e por consequência também sua nitidez.
Também é preciso lidar com a falta de profundidade de campo, ou seja, dependendo da densidade da neblina uma parte menor de planos do ambiente escolhido ficam aptas a estar em foco.
Bruno Todeschini, repórter fotográfico do jornal Pioneiro
“Não existe nada mais sutil que um dia de neblina”
A neblina ou a cerração fazem parte da minha vida desde criança. Na infância, eu só podia contemplar pela janela da casa da minha vó Neusa, ali na Barragem do Salto, em São Francisco de Paula.
Minha vó dizia que a neblina molhava e trazia consigo a gripe. Então, eu admirava-a de longe para não ficar doente. Ficava na janela pensando em tudo que a neblina escondia por instantes e depois trazia à vista, como se nada tivesse acontecido na sua passagem. Na adolescência, eu desejava dias fechados, por causa da literatura romântica que eu lia: Goethe, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Baudelaire. Continuei contemplando pela janela, mas agora com frases na cabeça. Ficava ali imaginando aqueles cenários e sentimentos descritos pelos poetas. Parecia mais fácil amar naqueles dias, onde se esconder da vida parecia possível.
Hoje eu moro na sede de São Francisco de Paula, à beira do lago São Bernardo e caminho por ali em dias de neblina/cerração. Perdi o medo da gripe, mas ainda penso nos poetas, nestes amores que pedem um tempo na agenda e em um outra vida que existe nesta névoa. Muitas vezes desejamos, ardentemente, dias escancarados de sol e esquecemos que a vida se faz na sutileza. E não existe nada mais sutil que um dia de neblina.
Patrícia Viale, jornalista, escritora e artista visual
“A neblina atrapalha os dois times”
É uma situação diferente. Eu não estava acostumado com a neblina e já deu para perceber que é bem rotineiro aqui em Caxias. Às vezes, quando amanhece, você olha pela sacada do prédio e não vê nada, aí chega no Centro de Treinamento e continua não vendo nada e daqui a pouco o sol abre e o tempo fica bom. A gente tem treinado com esse clima e estou me adaptando o melhor possível.
A primeira vez que passei por uma situação de ter um jogo adiado por causa da neblina foi aqui no Juventude. Foi bem estranho. Subimos ao gramado para aquecer e a gente não consegui enxergar o gol do outro lado do campo. A gente tem de se adaptar, porque é uma situação rotineira por aqui. Às vezes, a neblina vem e vai na mesma hora.
As equipes que vêm do Nordeste para jogar aqui sofrem bastante com o frio, porque não estão acostumadas com o clima. Então é um fator que nos ajuda. Mas a neblina, não, porque atrapalha os dois times.
Reginaldo Lopes de Jesus, lateral direito do Juventude, natural de Salvador
“A neblina acaba ocasionando problemas nos aeroportos”
Fiz uma estatística entre os meses de abril e agosto deste ano, que são os cinco meses mais críticos para a operação do aeroporto em Caxias. Tivemos 750 voos nesse período. Desses, 82 foram cancelados, o que representa pouco mais de 10%. Sabemos que, infelizmente, a neblina é um fenômeno climático que é comum, mas acaba ocasionando problemas nos aeroportos. A visibilidade se torna muito reduzida e pode deixar a operação limitada ou até ocasionar o fechamento dos aeroportos.
Mas, os aeroportos têm uma variedade de medidas e protocolos para lidar com isso e minimizar os impactos nos voos do aeródromo. Existem aeroportos equipados com sistemas de auxílio de navegação com instrumentos de pouso por aproximação, como em Porto Alegre, que ajuda os pilotos a realizarem pousos seguros, mesmo em condições de visibilidade reduzidas.
Aqui na Serra, mesmo que a porcentagem de voos canceladas seja baixa, a neblina é tão intensa que, mesmo que tivéssemos aqui um equipamento mais sofisticado, não melhoraria muito as condições, porque fica abaixo dos mínimos exigidos para a operação. Mas os aeroportos, como o Hugo Cantergiani, junto com as companhias, estão preparados para lidar com esses desafios, implementando medidas de segurança e planejamento de contingências.
Maurício Loreto D’Avila, diretor do Aeroporto Regional Hugo Cantergiani, de Caxias do Sul
Do outro lado havia um campo?
Mesmo que seja um tanto vagamente, nos meus onze anos, eu ainda me lembro daquele enevoado domingo de 29 de maio de 1955. Amanhecera uma bruma tão espessa que se a nossa cidade tivesse um porto, os navios não poderiam atracar. Aeronaves sem permissão para decolar ou aterrissar. Tudo completamente fechado.
Havíamos programado assistir o jogo do Juventude com o Aimoré (ou teria sido com o Esportivo?), mas as condições atmosféricas determinaram a mudança de planos. Optamos por uma tarde de circo, protegidos pelas lonas, ainda mais que fazia bastante frio. O "respeitável público" se alvorotou sob o frenesi do rufar dos tambores e a sessão começou pontualmente às duas e meia.
Depois de vibrarmos com os arrojados trapezistas, a valentia do domador e gargalhados com as graças dos palhaços, saíamos para a rua e recém passara das quatro. Ora, o circo se achava acampado no espaço vazio aonde, atualmente, está o Supermercado Zaffari, a uma quadra do Alfredo Jaconi. Tínhamos tempo, pois ficamos sabendo que o jogo se atrasara por causa da cegante cerração. Por pouco não cancelado.
Chegamos por volta dos 30 minutos iniciais. Não se enxergava patavinas! Era como vidraças embaçadas. Tinha-se adivinhar aonde estavam os jogadores e a bola. O mesmo que perfurar com os olhos uma barreira invisível à cata de duendes. A cada pouco, o árbitro interrompia as ações na esperança de que a neblina sumisse. Qual nada! Não houve jeito e ele encerrou uns dez minutos antes do prazo regulamentar.
Me disseram que foi 2x2. Me disseram, porque eu não vi um único dos quatro gols. Só perto do anoitecer seguinte o nevoeiro se dissipou e as estrelas reapareceram timidamente. Como escreveu o genial Victor Hugo: "Vá para dentro de sua própria neblina e veja com clareza o que você quer ver".
Crônica inédita de Francisco Michielin, médico e escritor, patrono da Feira do Livro de Caxias do Sul em 2023