Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Pegamos aqui emprestada a frase do cineasta Glauber Rocha, que ajudou a definir o movimento conhecido por Cinema Novo, dos anos 1960 e 1970, para aplicá-la ao trabalho do pernambucano Bruno Itan. Nesta semana, o fotógrafo radicado no Rio de Janeiro esteve em Caxias do Sul para conhecer comunidades e registrá-las com o seu olhar poético, treinado para capturar imagens que passam despercebidas aos olhos de quem vê de fora, mas também de muitos que vivem por dentro o dia a dia nestes bairros periféricos.
A ideia que uniu o pernambucano ao projeto cultural Mosaico na Quebrada, Instituto Samba e Espaço Cultural Vielas foi a de fazer despertar nos moradores de bairros carentes de Caxias do Sul, especialmente nas crianças, o interesse por fotografar o lado bom da vida nesses lugares que muitas vezes são clicados apenas pelos aspectos negativos que os levam mais frequentemente ao noticiário.
Itan, 34 anos, ganhou visibilidade nos últimos anos pelas fotografias e vídeos que produz no Complexo do Alemão, favela carioca onde cresceu. Apenas no Instagram, soma mais de 60 mil seguidores. Seja ao relatar sua própria história ou para contar como inspira mais crianças a se interessarem pela fotografia, utiliza a mesma analogia: da câmera como uma arma poderosa para transformar o mundo.
- Através do meu olhar tento mostrar o mundo que eu vejo. Antes de fazer o clique eu sinto a imagem. A fotografia é a expressão desse sentimento. Quando converso com a garotada eu pergunto: "se você está vendo de um lado um garoto segurando um fuzil, e do outro lado está me vendo com a minha câmera, você está diante dessa escolha. Você quer aquela que pode te levar pra prisão ou aquela que pode mudar tua vida e mudar o mundo?" Lá onde eu vivo, infelizmente o crime ainda chega primeiro. A criança abre a porta de casa e já vê alguém vendendo droga, vê alguém armado. A gente precisa tentar começar a chegar antes - aponta o profissional, que é criador do projeto Olhar Complexo, no qual ajuda crianças humildes a desenvolver o talento para a fotografia.
GALERIA: CONFIRA IMAGENS CEDIDAS POR BRUNO ITAN À REPORTAGEM
Mais do que dividir um pouco do seu conhecimento e do olhar treinado para enquadrar os melhores ângulos, o que Bruno quer é fazer com que os moradores possam desenvolver um olhar mais positivo sobre os lugares onde vivem:
- A intenção não é que eles façam uma boa fotografia, mas eles viverem essa experiência e terem uma outra percepção sobre os lugares onde eles moram. Às vezes o garoto olha uma foto bonita e nem acredita que é do mesmo lugar que ele passa todo dia. É sobre tornar bonito aquele lugar que ele acha feio. Técnicas de composição, luz, enquadramento, são coisas que demoram pra pegar, mas isso o automático dá conta. O importante é para onde eles vão olhar.
Nos dias que passou em Caxias, ciceroneado pelo também fotógrafo caxiense Willian Cabral, Bruno circulou com sua câmera por bairros da Zona Norte, como Canyon, Vila Ipê e Santa Fé, e conheceu ações sociais que se tornaram referência de inclusão e cidadania no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz.
- É muito gratificante trazer um fotógrafo que é referência no trabalho em favelas, dono de um trabalho único. Eu sempre quis fotografar a minha quebrada, o lugar onde nasci e me criei, e o Bruno é uma grande inspiração - destaca Cabral, que há quatro anos fotografa profissionalmente.
Pelas ruas do chamado Complexo da Antena, entre os bairros Jardelino Ramos e Jardim América, Cabral serviu de anfitrião para Bruno Itan e para duas crianças atendidas pelos projetos do Centro Cultural Vielas, os primos Myckael, 14, e Eder Luiz de Matos, 10. A eles se somaram a menina Lorraine dos Reis, 7, moradora do Complexo da Antena, e Bruno Roth Broch, 38, apaixonado por fotografar paisagens e fenômenos da natureza, mas que nunca tido a oportunidade de segurar uma câmera profissional.
- Não tem um dia que eu não tire um tempo pra pegar o celular e fotografar. Devo ter umas 20 mil fotos. Até do chão, das pedras…para onde eu olho e vejo algo legal eu tiro foto e as mais bonitas eu posto no Instagram. Já saiu até uma no Pioneiro (na seção Do Leitor, edição do último dia 12/6) - diz Bruno, que trabalha com serviços gerais na comunidade.
Com as câmeras emprestadas pela produtora Off.Photo, parceira do projeto, crianças e adultos fotografaram por cerca de duas horas, capturando o cotidiano das pessoas, o vai e vem de carros e motos, a paisagem que permite ver ao longe os prédios mais altos da área central de Caxias. Receberam olhares curiosos, uma ou outra buzina de motoristas menos condescendentes, mas também muitos sorrisos que poderão ser vistos futuramente numa exposição virtual, que é um dos objetivos do projeto, viabilizado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura.
O trabalho social desenvolvido por Bruno Itan, assim como o de coletivos caxienses que atuam para dar empoderamento e autoestima às regiões mais carentes, faz lembrar a frase fotógrafa norte-americana Dorothea Lange (1895-1965). Ela disse certa vez que a câmera é um instrumento que ensina a ver sem câmera. Seja ao ter a fotografia como profissão ou meramente como hobby, olhar para a realidade e tirar dela um recorte para a posteridade envolve não apenas senso estético, mas também uma visão de mundo. Um olhar crítico que se aguça na necessidade de fazer escolhas quanto ao que deixar de fora. Vai além de procurar a beleza, mesmo quando o que se quer é o instantâneo mais bonito. É capturar no efêmero aquilo que é eterno.