1913 foi um ano de respiro em meio a dois acontecimentos históricos: o naufrágio do Titanic ocorreu um ano antes, a Primeira Guerra Mundial iniciou no ano seguinte. Mas foi naquele ano que, na Serra Gaúcha, nascia em Caxias do Sul o Esporte Clube Juventude e também a Banda Santa Cecília, no então distrito caxiense de Nova Pádua (que depois viria a ser distrito de Flores da Cunha e só se tornaria município em 1992). Ainda em atividade, o conjunto musical mais antigo do Estado tem no compromisso de seus integrantes com o legado centenário uma das explicações para a longevidade.
– Nós não esperávamos vencer tantas barreiras do tempo. Tivemos nosso centenário, agora celebramos mais uma década cheia. Manter uma entidade filantrópica exige muita doação e o mundo de hoje, por outro lado, exige que as pessoas trabalhem cada vez mais. Nosso orgulho e nossa satisfação se renovam em datas como essa, por poder carregar conosco a história que essa banda construiu nestes 110 anos – destaca a presidente da banda, Rita Cristina Peccati, também pandeirista e uma das vozes do conjunto.
A família Peccati é um dos sobrenomes mais recorrentes na atual formação. Além de Cristina, participam da Santa Cecília seus irmãos Lino e Nestor, sendo que todos eles têm seus filhos entre os instrumentistas. Nestor, mais velho dos três irmãos, já soma 52 anos de dedicação à banda, a maior parte deles tocando a tuba, mesmo instrumento do pai.
– Nosso pai era músico da banda e nos incentivava a aprender algum instrumento e a participar. Principalmente porque, 50 anos atrás, vivendo no interior, a gente não tinha tanta opção de divertimento, nem tanta oportunidade de viajar e de conhecer outras pessoas. Tudo isso a banda nos proporciona, preenchendo a vida de bons sentimentos – comenta o tubista.
O surgimento da banda está intimamente ligado à agricultura, característica que se mantém nos dias de hoje: a maioria dos integrantes vive no campo e todos participam de forma voluntária (algumas ações movidas pela própria banda ou entidades parceiras ajudam a bancar os custos). Por volta de 1910, um grupo de trabalhadores rurais decidiu formar uma banda para poder compartilhar de momentos de alegria em meio a tantas horas de suor e a toda a dificuldade da vida no campo, recordando canções da pátria que deixaram para trás.
A formalização ocorreu em abril de 1913 e a apresentação inaugural ocorreu em frente à Igreja Matriz de Nova Pádua, sob a regência do maestro Alvize Parize e presidência do trombonista Benedetto Bigarella (avô do músico caxiense Ricardo Biga, harmonicista do Ária Trio). Foi no mesmo local onde nesta semana a Banda Santa Cecília voltou a se apresentar durante a Feira de Produtos Coloniais (15ª Feprocol), festa que em sua 15ª edição presta homenagem ao conjunto que é a expressão máxima da cultura local.
– É a banda Santa Cecília que leva o nome do município para além dos seus limites. A banda é Nova Pádua e Nova Pádua é a banda– avalia Lino Peccati, músico autodidata e que desde 1977 é regente da banda, sendo apenas o oitavo a ocupar esse posto.
Para o maestro, que por conta do ofício tem no seu vocabulário muito presente a palavra “harmonia”, é essa mesma palavra que explica o fato da banda se manter ativa há tanto tempo:
– Eu sempre digo para a banda que a gente precisa ter harmonia musical para agradar ao público, mas também ter harmonia entre nós. É uma segunda família, que passa muito tempo junta e que está unida pela vontade de dar sem receber.
Tendo como algumas de suas premissas ajudar na divulgação da cultura vêneta e na preservação do dialeto talian, a Banda Santa Cecília dedica a maior parte do seu repertório às músicas folclóricas italianas, como Mérica, Mérica, O Sole Mio e Quel Mazzolin di Fiori. Também em italiano o grupo apresenta a homenagem Nova Pádua Bella Cittá, composta por Lino Peccati. Mas os músicos também transitam pelas músicas regionais gaúchas, animando o público com clássicos como Querência Amada, de Teixeirinha, e Castelhana, de Elton Saldanha e Rui Biriva.
COMPROMISSO COM A HISTÓRIA
Para uma banda que se propõe a ser a trilha sonora para o município de 2,5 mil habitantes, contudo, não basta estar presente apenas nos momentos de festa. Pelo contrário. A maior parte das apresentações da Banda Santa Cecília se dão em eventos religiosos, mantendo uma intrínseca ligação com a fé da comunidade e também de localidades vizinhas.
– Dificilmente tu irás encontrar uma família de nova Pádua que nunca tenha tido um evento ao qual a banda esteve presente. Seja na alegria ou na tristeza, numa data marcante, a banda fez parte da vida da população, que reconhece isso – conta Cristina Peccati.
Ao longo de sua trajetória a banda coleciona homenagens, como a que recebeu na Assembleia legislativa do Estado no ano do seu centenário, com direito a apresentação ao vivo no plenário. Voltar a estar no centro das atenções durante a 15ª Feprocol traz um sabor a mais, que é o da garantia de continuidade que se dá em grande parte pela renovação. Cada músico que entra na Santa Cecília, como é o caso do percussionista Luiz Carlos Marcante, 26, cujo tio é saxofonista na banda, sabe da responsabilidade que é carregar um legado centenário a cada apresentação. Mas é isso que motiva a deixar de lado momentos de lazer para cumprir com a agenda musical como uma missão:
– Eu não tocava nenhum instrumento, mas a banda tinha a necessidade de alguém para tocar o bumbo e eu fui aprender, com 14 anos, movido por essa noção de que é preciso ajudar a dar sequência a essa história tão bonita e a divulgar o município de Nova Pádua.
Integrante da banda desde os oito anos, a saxofonista Aline Peccati, 28, filha do maestro Lino, compartilha do mesmo sentimento do colega do bumbo. Para Aline, tocar na banda é uma missão que os mais jovens cumprem com o mesmo prazer que aqueles que vieram antes:
– Nos primeiros anos eu tinha pouca noção da importância da Santa Cecília para Nova Pádua. Tinha aquele interesse de criança e adolescente que quer estar com os amigos, e muitos da minha idade tocavam também na banda. Conforme o tempo passa e a gente precisa fazer escolhas, eleger prioridades chega a ficar um pouco balançado. Mas quando a gente se dá conta da responsabilidade em ser o futuro dessa instituição, é como se não tivesse maneira de voltar atrás. E o reconhecimento que a gente tem faz tudo valer a pena.
Para quem quiser conferir de perto a Banda Santa Cecília, o conjunto ainda fará três apresentações no palco principal da 15ª Feprocol, cujo tema este ano é “Uma Festa com Ritmo de Alegria”. Neste sábado, às 11h, no palco principal do evento, em frente à Igreja Matriz; no domingo, às 8h, durante a missa em talian na Igreja Matriz; e na próxima sexta-feira (24), às 18h, novamente no palco principal. Toda a programação do evento é gratuita.