A Serra ainda não era um destino turístico consolidado em outubro de 1982, ao passo que visitar Caxias do Sul significava basicamente visitar a Festa da Uva a cada dois anos. Embora os Pavilhões fossem o destino dos visitantes naquele fim de semana, não eram casais com filhos a fim de degustar variedades da fruta que cruzavam os portões. A legião de 15 mil de jovens de cabelos compridos e roupas coloridas que invadiu a cidade queria extravasar no 1º Encontro da Juventude Gaúcha, o Cio da Terra.
Este 29 de Outubro marca os 40 anos do início do festival que em três dias marcou uma geração crescida sob a repressão do regime militar, e que no início dos anos 1980 experimentava a passos lentos a liberdade de expressão e de comportamento que seus pais não tiveram. Com esse desejo vinha o de experimentar drogas e amor livre, ainda sem a ameaça da Aids, de falar sobre ecologia e política, e tudo isso ocorreu num grande fórum embalado por shows de nomes como Jorge Mautner, Ednardo, Geraldo Azevedo e Sivuca, que iam do início da noite até o amanhecer.
- Foi uma grande celebração para todos que estávamos lá e nos deixamos transformar por tudo aqui que estava acontecendo. Era uma época em que o jovem não tinha nada para fazer em Caxias, que não se tinha liberdade para quase nada, e de repente surgia todo aquele leque de opções - recorda o publicitário caxiense Álvaro Garcia, 59.
Álvaro guarda com carinho as poucas recordações físicas que resistiram a inúmeras mudanças ao longo do tempo. Entre elas estão uma fotografia sua enrolado em um cobertor no amanhecer de sábado; o material de divulgação de uma palestra sobre legalização da maconha e o ingresso que garantia entrada para os três dias de evento. As memórias imateriais, no entanto, são fartas.
- Lembro de sair com os amigos do Bar América, que ficava em frente ao (colégio) Carmo, e quando passamos o calçadão da Júlio de Castilhos e chegamos no Ópera, o centro estava tomado por aqueles hippies esperando o ônibus pra ir pros Pavilhões. Era a bicho-grilagem mais pura que se reuniu em Caxias. Muita gente nem sabia o que estava acontecendo, e é claro que os mais conservadores ficaram escandalizados. Tinha um radialista muito famoso que começou a perguntar como a prefeitura podia ter liberado aquele evento em que todo mundo ia fumar maconha e andar pelado, sendo que só a primeira parte era verdade. Pelado mesmo só lembro de um, que era um peladão folclórico do centro de Porto Alegre que veio pro festival. Fora isso, só o pessoal que ia tomar banho de cachoeira numa chácara que tinha perto dos Pavilhões - conta.
Organizado pela União Estadual de Estudantes (UEE), o festival tinha três eixos principais, explicitados no cartaz: artes, debates e música. Além das atrações musicais, o festival reuniu nomes como o escritor Caio Fernando Abreu, a atriz Ítala Nandi e os jornalistas Fernando Gabeira e Eduardo Bueno. Houve também uma grande mobilização do Diretório Central de Estudantes (DCE) da UCS, que no ano anterior já havia realizado o festival Natura Som, de menor porte, mas que acabou servindo de embrião e ajudando a escolher Caxias como sede para o Cio da Terra.
Entre os estudantes que se engajaram na realização do festival estava o atual presidente da SER Caxias, Mário Werlang, 61. Então com 21 anos, Mário havia chegado a Caxias dois anos antes, após ser aprovado no vestibular de Engenharia. Catarinense de São Carlos, Mário se envolvia com a militância de esquerda e já integrava o Diretório Acadêmico do curso. Um ano após o Cio da Terra, estaria na chapa que presidiu o DCE.
_ Eu e alguns colegas fomos escalados para montar o palco. Foi uma trabalheira danada. E durante o festival estava numa barraquinha que vendia salchipão (salsichão com pão) para arrecadar fundos pra campanha política. Só saía dos Pavilhões para pegar o ônibus e ir à cidade comprar mais pão e salsichão e voltava _ recorda o empresário.
Como não dá para falar só de flores, quando invariavelmente alguém pergunta porque houve apenas um Cio da Terra, Werlang ajuda a explicar. Após o festival, conta, foram necessários dois anos para cobrir prejuízos:
_ Essa parte ofusca um pouco as memórias boas. Ao contrário do prefeito Mansueto (Serafini Filho, prefeito em último ano de mandato, em 1982), a gente não recebeu apoio nenhum da gestão seguinte (de Victorio Trez), que poderia ter pelo menos aliviado um pouco. Foram dois anos organizando pequenos eventos e se virando para conseguir pagar tudo Teve um amigo que precisou penhorar até a casa dos pais. Mas é claro que, tanto tempo depois, o que fica são as lembranças boas, da mobilização de uma galera que mostrou que com coragem dá para fazer qualquer coisa.
Uma comunidade colaborativa
_ Foram 72 horas respirando cultura em meio a gente fina, elegante e sincera.
Assim o arquiteto e urbanista caxiense Erni Sabedot define a experiência que teve aos 18 anos, no Cio da Terra.
Estudante secundarista à época, Erni adquiriu o ingresso junto ao Grêmio Estudantil do Instituto Cristóvão de Mendoza e partiu com amigos rumo aos Pavilhões, para montar sua barraca. Buscou um lugar com vista favorável para o palco, mas logo o mar de barracas armadas em qualquer espaço coberto por grama impediu qualquer visibilidade. O jeito foi circular para aproveitar ao máximo, pois assistir a tudo o que estava acontecendo era impossível.
_ A gente não dava conta, porque eram diversas atividades ao mesmo tempo e tu tinhas que escolher uma pra assistir de acordo com aquilo que te interessava mais. Podia ser um debate, uma apresentação de dança, uma roda de capoeira. Era uma efervescência. Especialmente para quem era de Caxias, ter tudo aquilo e mais todos aqueles shows, era um milagre. Só depois do Cio da Terra a cidade entrou no mapa das turnês nacionais.
Erni se diverte ao recordar da bebida que mais circulava pelo festival, principalmente quando os mercados das proximidades já estavam desabastecidos devido à procura fora do comum por mantimentos:
_ A gente se obrigava a tomar um tal de Vino Mio. Era um vinho servido num copo descartável, horrível. Só não era pior que a ressaca que dava no outro dia.
Ao contrário do vinho, o que deixou boas lembranças foram apresentações musicais inesquecíveis, como a da banda porto-alegrense Raiz de Pedra, que sequer estava no programa, mas subiu a Serra por conta própria para tocar no evento que já se anunciava épico, e do Tarancón, banda de ritmos latinos que fazia pinturas ao vivo numa enorme tela fixada ao fundo do palco. Acima disso, marcam a memória de Erni Sabedot os três dias em que foi possível experimentar um mundo demais compreensão e afeto:
_ Foram três dias em que não teve uma briga, nenhum ato de violência sequer. As pessoas se cuidavam, ajudavam a montar as barracas, todo mundo se ajudava. Formou-se uma verdadeira comunidade colaborativa.
Nei debaixo d'água
Embora seja caxiense, em 1982 já fazia quase 20 anos que Nei Lisboa havia se mudado para Porto Alegre para se tornar um dos principais compositores do rock e da canção popular no Estado. Aos 23 anos, Nei era um dos expoentes de uma cena boêmia que tinha na Rua Osvaldo Aranha, na Capital, ponto de encontro de artistas, jornalistas e todo tipo de jovem interessado em mudar o mundo. Quando veio para o Cio da Terra, Nei ainda estava prestes a lançar um de seus álbuns mais icônicos "Para Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina", que sairia no ano seguinte, e já estava escalado como um dos nomes principais da primeira noite. Mas nem tudo ocorreu como se esperava.
A apresentação de Nei Lisboa no Cio da Terra teve de ser interrompida após três ou quatro músicas, quando um temporal inesperado caiu sobre a cidade. O show seguinte, que seria de Bebeto Alves, sequer ocorreu. O músico, que há duas semanas esteve em Caxias para se apresentar no aniversário _ também de 40 anos _ da Casa da Cultura, diz ter "memórias difusas" daquele período, mas jamais esqueceu do toró que o deixou debaixo da lona que cobria o palco:
_ Os músicos foram parando de tocar um a um, o pessoal começou a desligar as caixas, e logo só estávamos o baterista e eu tocando, quando as poças que se formaram na lona pesaram e ela veio abaixo por cima da gente. Como fiquei os três dias, a organização achou um horário para eu fazer um set sozinho de voz e violão, porque a banda que me acompanhava (Cheiro de Vida) já tinha que voltar para Porto Alegre para fazer outro show, talvez com o próprio Bebeto Alves, que também tocava com eles.
Quando se compara o Cio da Terra ao lendário festival de Woodstock, que ocorreu em 1969 nos Estados Unidos, Nei pontua uma diferença: já havia, em Caxias, uma consciência ambiental que parecia faltar aos americanos:
_ Lembro de ter acordado, saído da barraca em que dormi e visto bastante gente recolhendo o lixo. Era uma preocupação constante. Nesse sentido não dá pra comparar, porque a gente vê nas fotos e vídeos que o Woodstock virou um mar de lixo quando acabou o festival.
Ao revisitar e buscar entender o que significaram aqueles três dias de viagem no cosmos sem gasolina, Nei Lisboa considera que há dois aspectos muito marcantes do Cio da Terra em sua trajetória:
_ O primeiro é como músico, de poder participar de um evento muito fora da curva tecnicamente. Naquela época era tudo muito difícil para a gente em termos de equipamento, de estrutura e de know how. No festival a gente descobriu como era tocar com uma estrutura altamente profissional, que foi montada para atender os shows nacionais e a gente desfrutou junto. O segundo é a própria vivência de independência e liberdade que era uma busca própria daquela época. O Cio foi o espaço em que tudo aquilo aconteceu de uma forma um pouco resguardada da repressão habitual que a gente tinha em Porto Alegre, onde só queria viver a juventude com todos os excessos que são necessários, mas sempre tomava paulada da polícia, era revistado contra a parede. O Cio representou um desafogo, foi a primeira vez de muitas coisas para muita gente.