"Uma favela onde se vê vários talentos, mas também muito sofrimento. Tinha tudo para ser um MC (Mestre de Cerimônias), mas hoje tá trampando na boca".
"Atrás de uma porta de ferro, eu penso em várias fitas. Como tá a minha mãe? Como tá a minha rainha? Que me avisou uma pá de vez pra mim não se envolver".
"Saudade da minha liberdade. Mas só dei valor agora atrás das grades".
"Se Deus quiser eu vou pra casa logo no fim desse ano. E o meu sonho é dar uma casa, uma casa pra minha senhora. Mas é através da caneta, e não de uma pistola."
Os trechos que abrem esta reportagem fazem parte de músicas escritas por menores infratores que cumprem medidas socioeducativas no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) e no Centro de Atendimento em Semiliberdade (Casemi), da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), em Caxias do Sul. São versos carregados de gírias, que falam de liberdade, expõem a saudade dos amigos e da família, principalmente com referência às mães, mas que também pedem proteção, revelam sonhos interrompidos e projetam como será a vida depois do cumprimento da pena, fora das instituições.
Além de serem orientados e incentivados a compor canções que expõem as próprias histórias acompanhadas de angústias e sensações, os adolescentes também emprestaram a própria voz para gravar as rimas em forma de música. O resultado é uma mistura harmônica entre a batida seca com mensagem áspera, característica do rap, acompanhada dos versos da pajada, que integra a cultura gaúcha e platina, com o acordeom, bombo leguero e violão e também mediados pelas intervenções eletrônicas de um DJ.
A conexão dos ritmos e a formação de novos compositores fazem parte do projeto RAPajador (R)ap (A)dolescentes (P)ajada, realizado entre os meses de junho e julho deste ano no Case, Casemi e também no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), ligado à Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias. A ação é liderada pelo rapper e educador social Chiquinho Divilas, além do acordeonista Rafael De Boni e do DJ Hood.
O trio dá vida ao projeto desde 2018 e viajou por outras cidades levando a combinação dos ritmos em forma de show, mas encontrou na socioeducação um lugar para que jovens infratores possam se expressar, e para que exponham a realidade e desenvolvam talentos capazes de dar um novo sentido às suas vidas. Por meio da rima, os adolescentes puderam mostrar suas próprias histórias e olharem para si mesmos.
— Em uma das apresentações que fizemos em Chapecó, antes da pandemia, adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas assistiram e ficaram impressionados de como era possível fazer rap com o acordeom. Contaram que esse instrumento fazia lembrar o avô deles. Desde então, adaptamos para inserir o projeto na socioeducação. Investir nessa área é investir na chance de diminuir a violência, mesmo que isso seja um desafio no pensamento para muitas pessoas — contou Chiquinho Divilas.
RAPSs produzidos no Case
INFLUÊNCIA REGIONAL
Por mais que o hip-hop faça parte da cultura de muitos jovens, o ritmo ainda é influenciado por versões criadas em estados do Sudeste do Brasil e a inclusão da pajada, segundo Chiquinho Divilas, busca dar uma versão ainda mais local para as músicas gravadas. Ainda segundo ele, o projeto RAPajador faz um link entre a cultura do rap com a pajada, com referência ao rapper Mano Brown, do icônico grupo Racionais MC's, e Jayme Caetano Braun, poeta e pajador gaúcho, símbolo do tradicionalismo. "Um encontro de Brown com Braun porque cada um tem o seu James Brown", como brinca Divilas, referenciando o cantor norte-americano conhecido como pai do funk.
No Case, Casemi e no Creas, o RAPajador iniciou com a realização de oficinas de rima, pajada e DJ, apresentando os ritmos e propondo a troca de conhecimento. Em seguida, os menores começaram a compor as canções. Segundo Divilas, muitos deles trouxeram textos prontos, escritos e guardados há bastante tempo, que foram adaptados para o projeto.
— As pesquisas mostram que a evasão escolar é a principal responsável pela inserção desses jovens no crime. Eles saem da escola, se espelham naquilo que está mais próximo e, nas periferias e áreas de conflito, acabam se envolvendo com a criminalidade. Por isso, é necessário levar projetos assim para escolas, na comunidade, na socioeducação e no fortalecimento de vínculos. Um dos jovens trouxe 80 páginas de um caderno com composições próprias. Se colocar uma capa, um sumário e um prefácio, vira um livro, uma obra literária feita pelo adolescente. São muitos talentos que acabamos perdendo por um convite, por aquilo que eles veem primeiro na rua — conta o rapper.
Depois das oficinas, o passo seguinte foi a gravação das músicas, que fez com que as unidades recebessem a estrutura de um estúdio móvel para a captação dos áudios. Para muitos dos adolescentes, foi o primeiro contato com um microfone e a oportunidade de gravar a própria voz em algo que eles mesmos criaram. A etapa foi organizada por Rafael De Boni, que também é produtor cultural. Após a gravação, coube a ele inserir a trilha sonora, escolhida juntamente com os responsáveis pela produção.
— Trabalho com música há muitos anos e essa experiência de levar o projeto para menores privados de liberdade foi desafiadora. É uma cultura que, de certa forma, já está inserida no dia a dia deles e a oportunidade que demos enquanto projeto foi de eles gravarem, se expressarem, transformarem a angústia e os desejos em música. O resultado do projeto é a realidade deles — resume De Boni.
Depois dos resultados obtidos nas unidades da Fase, o projeto RAPajador chegará agora aos presídios de Caxias do Sul. Um primeiro contato de Chiquinho Divilas, Rafael De Boni e o DJ Hood com os apenados da Penitenciária Regional de Caxias do Sul ocorrerá na próxima terça-feira (13), enquanto a atividade inaugural na Penitenciária Estadual de Caxias, no Apanhador, ocorrerá até o final do mês. Na prática, o projeto é apresentado e os apenados manifestam se desejam participar da iniciativa, compondo e gravando as canções.
RAPSs produzidos no Casemi
“Todo mundo conseguiu expor algum tipo de ideia”, conta adolescente que participou do projeto
Maurício*, um dos adolescentes que cumprem atualmente alguma medida no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Caxias do Sul, orgulha-se de ter uma música em destaque no projeto RAPajador. É dele a letra e a voz da canção que também encerra um dos podcasts produzidos pela iniciativa de Chiquinho Divilas, Rafael De Boni e DJ Hood - disponível no site do projeto.
Acostumado a ouvir funk e rap, o jovem recebeu a oportunidade de unir os versos que falam da saudade e da liberdade em uma música autoral. Quando soube do projeto no Case, Maurício procurou Chiquinho e contou que gostava de escrever músicas. Logo, foi um dos primeiros da sua galeria a compor e a gravar em uma estrutura montada no auditório da instituição.
— Foi diferenciado, uma oportunidade a mais que a gente teve de se expressar por meio da música. Tentei colocar na música o que a socioeducação me ensinou, que é ter sentimento que o cara não tinha na rua, a saudade da família, como usar a liberdade _ recorda Maurício.
O projeto deixou resultados que duram até hoje:
— Todo mundo aqui (no Case) conseguiu expor algum tipo de ideia. Assim como eu cantei, teve mais uma gurizada que cantou. E muitos deles continuaram escrevendo música, se inspirando, vendo que ali (na música) tem uma saída. São pessoas, como o Chiquinho, que acreditaram no nosso sonho, o que é difícil. Deram aqui uma oportunidade que ninguém nunca teve na vida — relata o adolescente.
*O nome do adolescente foi trocado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
RAPSs produzidos no Creas
Músicas produzidas pelos adolescentes
"Saudade é a palavra que vem na mente
A depressão encosta constantemente
Posso estar privado, mas eu não estou morto
Pra minha coroa não vou dar esse desgosto
E acabando mais um dia
Eu to pensando na minha família
To pensando também naquela que me abandonou
Que em uma noite escura me chamava de amor
Mas amor que nem esse eu tô tranquilo
Amor é só de mãe, esse sim é o gatilho.
Só a senhora que vem na minha visita, e saiba mãe que eu te amo.
Toda a alegria é passageira
E nenhum sofrimento será eterno.
Hoje eu sou um menor infrator, mas amanhã eu posso ser um talento"
"Ai que saudade, ai que saudade, ai que saudade do mundão
Da minha família, que saudade dos irmãos
De aproveitar com a família e fazer aglomeração
Mas infelizmente, tô privado do mundão
Mas não é eterna, ela logo chega então
Vou aproveitar cada momento então com a minha coroa
Que nunca me deixou na mão
Mas infelizmente só dei desgosto
Mas daqui pra frente eu quero dar muito orgulho
Quando eu sair vou ficar tranquilo
Fazer uma família e ver a minha mãe sorrindo
Minha maior riqueza é ter minha família comigo
Ai que saudade da minha rua
Que saudade do mundão,
Logo tô lá fora
Jorrando disposição
Ai que saudade, ai que saudade, que saudade do mundão
Da minha família, que saudade dos irmãos"
"E atrás de uma porta de ferro eu penso em várias fitas
Como tá a minha mãe, como tá a minha rainha
Que me avisou uma pá de vez pra mim não se envolver
Mas chora agora ri depois
Não deixe pra depois
Vou cantando mais uma letra
Vida do crime é uma opção
Mas não caia nessa não
É mó tormento dentro de uma cadeia
Eles humilham os irmãos
Pedem pra deitar no chão
Ó meu Deus só peço que o senhor me proteja
Ó meu Deus só peço que o senhor me proteja
Vocês tem que entender o porquê de hoje eu ser bandido
É porque na verdade o sistema é um lixo
Tudo que eu plantar eu sei que eu vou colher
Com essa experiência eu sei que vou aprender
Focando no processo adquirido e proceder"