Se na infância uma das frases que Juliano Chedid, 41 mais escutava era a de que meninos não choram, na vida adulta o bordão que passou a ouvir dos amigos nos momentos em que tentava expressar alguma vulnerabilidade mudou: “enche a cara que resolve”. Decidido a rever crenças sobre fragilidade emocional que carregou consigo desde o berço, a fim de ser um pai melhor e mais presente para o filho, João Augusto, 9, Juliano percebeu que, melhor do que se embriagar para esquecer os problemas, seria fazer psicoterapia.
Não foi a primeira vez que o empresário recorreu ao divã para lidar com as próprias emoções. Da última vez, no entanto, entendeu que poderia ser a mais decisiva, por envolver também o futuro do filho. A preocupação surgiu quando Juliano se divorciou da mãe do menino, cinco anos atrás. O pai conta que sempre procurou ser muito presente na vida do filho, mas a perspectiva de não vê-lo todos os dias o deixou receoso de que o vínculo pudesse enfraquecer. E por não ter tido uma referência paterna após a separação dos seus próprios pais, quando entrava na adolescência, temia não conseguir ser, ele mesmo, uma referência paterna positiva.
– Quando a gente começa a entender que está tudo bem o homem precisar de ajuda, e de que é possível ser mais feliz falando abertamente sobre o que a gente sente, também começa a desconstruir as verdades que cresceu acreditando. Assim a gente consegue oferecer para o filho o acolhimento que vai ser importante quando ele precisar. Vejo que muitos amigos e conhecidos seriam mais felizes se fizessem terapia, mas têm resistência a aceitar que sofrem emocionalmente – comenta Juliano.
Está na infância a origem da dificuldade que os homens enfrentam para externar emoções fragilizantes. Educados numa cultura machista, aprendem que demonstrar sensibilidade é sinal de fraqueza. E que é errado demonstrar fraqueza. Esse comportamento, segundo explica o psiquiatra Luiz Carlos Prado, está intrinsecamente ligado ao culto à agressividade e a violência que experimentamos na sociedade atual.
– A gente vive um incremento da valorização e da exaltação destas supostas “qualidades” masculinas. O uso das armas, por exemplo. Há um componente em parte da sociedade que exalta muito fortemente a agressividade, o uso de armas e a violência, de forma indireta. Tudo isso tem a ver com a ideia de resolver questões através do enfrentamento, seja no bar, no trânsito, na arquibancada do estádio de futebol. Isso vai refletir na violência doméstica e nos feminicídios, que estão cada vez em maior número – aponta o especialista.
Foi por perceber a urgência de falar sobre essa dificuldade que Prado e a esposa, a psicóloga farroupilhense Adriana Zanonato, escreveram o livro O Menino Que Não Podia Chorar (Arte em Livros, 2019, 34 páginas. R$ 65), uma história terapêutica que busca romper crenças disfuncionais sobre masculinidade, principalmente a de que é errado demonstrar sentimentos.
– Enquanto as meninas crescem aprendendo a exercitar o afeto, os meninos estão aprendendo apenas que têm de ser fortes. Isso está na base do comportamento masculino que a gente considera disfuncional, que torna os homens duros de cintura, brigões, raivosos e apenas capazes de resolver as coisas de maneiras inadequadas – ressalta Adriana.
Luiz Carlos Prado conta que o livro traz algo de autobiográfico, uma vez que ele mesmo teve de trabalhar intimamente para reverter a herança de uma criação machista, na qual a ordem era reprimir qualquer sentimento que pudesse denotar fragilidade ou insegurança:
– Essa cultura é muito forte no Rio Grande do Sul, talvez mais do que em outros lugares. O homem não pode demonstrar fraquezas, e assim não aprende a lidar com medos, angústias e tristezas que são humanas. Crescem e desenvolvem apenas o sentido de competição, que irá determinar comportamentos muitas vezes indesejados. Muito provavelmente vão ter dificuldade de lidar com as próprias emoções, de compreender as mulheres e seus filhos pequenos em suas ansiedades e medos.
Corroborando a percepção no dia a dia na clínica, estudos científicos apontam a relação entre o abandono dos pais e a inabilidade emocional como um ciclo vicioso, que se perpetua na cultura machista em que os homens não assumem responsabilidade afetiva para com os filhos. O psiquiatra destaca que casos como o dos caxienses do início desta reportagem, que desenvolveram uma relação muito próxima desde a primeira infância, costumam se estender pela vida toda:
– Pais que ajudam a trocar fraldas, a dar banho, dar comida, acalentar, são pais que dificilmente vão abandonar os seus filhos, mesmo quando o casal separa. Não são homens que vão se desinteressar, perder o contato e deixar essa quantidade enorme de mulher cuidando sozinhas dos seus filhos. Quando tu cuidas de um bebê, tu precisas desenvolver habilidades que não são ensinadas aos homens. Ser carinhoso, abraçar com delicadeza, aconchegar a criança no seu colo. Esse contato mais próximo torna o homem mais sensível e delicado, e também mais capaz de perceber a fragilidade do ser humano, que está totalmente exposta naquele bebê que ele tem nos braços – analisa.
O bordão que Juliano Chedid ouve dos amigos, apesar do tom jocoso, esconde outra realidade alarmante. Sem a devida abertura para lidar com suas emoções, os homens são os que mais buscam no álcool a fuga para os problemas. Por consequência, são os que mais sofrem de dependência: o alcoolismo afeta 10% da população brasileira, sendo que 70% dos alcoólatras são homens. Luiz Carlos Prado aponta outros malefícios que a falta de intimidade com seu universo interior provoca no universo masculino.
– Os homens morrem mais do coração e mais cedo, têm mais estresse, têm mais pressão alta, adoecem fisicamente por terem dificuldade de lidar com as suas emoções. Sofrem silenciosamente enquanto adoecem fisicamente. Por outro lado, quando se consegue quebrar essa barreira protetora e deixar seus corações falarem, aparecem coisas muito bonitas. Sentimentos e emoções que os homens também têm e muitas vezes não conseguem nem admitir – destaca o psiquiatra.
A masculinidade discutida em três fases
Ao longo dos últimos nove meses, a prefeitura de Caxias do Sul desenvolveu uma parceria com a ONG Promundo, instituto sediado em Brasília e que desenvolve trabalho voltado para a equidade de gêneros e prevenção da violência, com foco na masculinidade e na paternidade. À frente do trabalho, desenvolvido junto a Fundação de Assistência Social (FAS) e programa Primeira Infância Melhor, esteve o diretor-adjunto da ONG, Luciano Ramos. Em entrevista ao Almanaque, o pesquisador explicou que existem três grandes “janelas”, ou fases, para trabalhar a desconstrução da masculinidade tóxica:
– A primeira são crianças pequenas, de 0 a 6 anos e 11 meses. É uma idade muito propícia para trabalhar questões que irão reverberar na vida dela. Quando a gente consegue fazer esse trabalho, os resultados são muito positivos para que os meninos não cresçam com posturas machistas. A segunda é a adolescência e início da juventude, sobretudo quando a gente trabalha a questão de direitos sexuais e direitos reprodutivos. A partir disso, é possível trabalhar processos equitativos de gênero e instigar os meninos a problematizar relações de poder que são naturalizadas dentro de casa, como machismo e abuso. A terceira é a paternidade. Uma pesquisa que fizemos em 2018 mostra que 80% dos homens no Brasil serão pais. E que 100% dos homens no Brasil, em algum momento, vão exercer relação de cuidado com uma criança: seja enquanto educador, seja enquanto tio ou padrinho, irmão mais velho.
O projeto desenvolvido em Caxias teve como público-alvo pais de crianças atendidas pelo PIM, com o objetivo principal de conscientizar sobre paternidade participativa. Nesse sentido, segundo Luciano Ramos, discutir a masculinidade é um ponto central:
– Quando a gente fala de paternidade participativa, está falando de desconstrução do poder que o machismo coloca como ponto central. A cultura machista diz que o homem não nasceu para o cuidado, e o homem machista surfa nesse privilégio. Ele nunca aprende e não faz. A gente também ensina. E quando o homem começa a exercitar isso a gente está mudando de paradigma, a partir da desconstrução do poder.
Luciano destaca que um dos grandes fatores para a perpetuação do machismo é o pensamento colonizado. A masculinidade hegemônica, ou idealizada, explica, é um padrão europeu no qual o homem latino-americano não se encaixa.
– A ideia (europeia) de masculinidade ideal é a do homem provedor, viril e poderoso. É o indivíduo que não vai errar nunca. E se a gente fala de países colonizados, onde é que um homem negro, indígena, gay ou branco, que não ocupa esse lugar de classe média de quem organiza o poder, se encaixa? Ele não cabe. Nisso ele passa a exercer micropoderes, que estão na violência doméstica, na violência contra a criança, nos espaços onde esse homem consegue exercer um mínimo possível de poder para tentar experimentar a masculinidade ideal inalcançável.
Ainda dentro dessa reflexão, Ramos traz à tona a tese da antropóloga colombiana Mara Viveros Vigoya observa que o homem, em sua busca pela masculinidade idealizada, mas que no máximo alcança uma masculinidade subalterna, é o que está mais suscetível a ter um comportamento machista e homofóbico:
– Ele vai desenvolver aspectos que estão ao seu alcance para tentar se legitimar enquanto macho ideal: vai ter o máximo de filhos, o máximo de parceiras, ter o máximo de controle da parceira, vai evitar tarefas domésticas. Irá performar um modelo de masculinidade que vai permitir a ele se posicionar como homem na sociedade. O machismo é um pacto no qual o homem heterossexual, branco, cisgênero e classe média domina e todo o resto precisa corresponder a isso. Por isso esses homens têm ódio de tudo aquilo que representa feminilidade ou que rompe com a masculinidade, como o homem gay ou trans.
TRADUÇÃO EM DADOS
Durante o seminário ocorrido em Caxias, a presidente da FAS, Katiane Boschetti da Silveira, apresentou dados que convidam à reflexão sobre o papel paterno nas famílias atendidas pela rede socioassistencial no município. Das 226 crianças e adolescentes atendidos em abrigos e casas-lares, 12% não têm registro do pai nas certidões. Já os atendimentos no Centros de Referência Especializado de Assistência Social, que atuam na proteção social de média complexidade, em situações de violência e negligência que envolvem as famílias, dois dados chamam a atenção: dos 83 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, 71 são do sexo masculino. E 60% têm a mãe como referência de família.
– Sabemos que a questão é cultural, mas precisamos fazer a autocrítica e pensar nessas questões, não só no campo profissional, mas também em nossas casas e relações – cobrou Katiane.