As mãos delicadas de Aline Lazzari, 32 anos, percorriam uma das estátuas do Esculturas Parque Pedras do Silêncio. Era a representação de um oleiro, fabricante de peças de barro, profissional fundamental no período da imigração germânica no Rio Grande do Sul. Sem nunca ter enxergado — nasceu com cegueira congênita —, Aline tentava ver a obra de arte do jeito possível para uma pessoa com deficiência visual.
— Tem água! Que gostoso tocar nessa água! — gritou ao descobrir o líquido no vaso, parte integrante da escultura, despertando a curiosidade de todos.
Valmor Heckler, proprietário do parque, se emocionou. A repórter também. Aline não pode ver os raios de sol de outono iluminando a escultura, uma das mais de 80 do espaço localizado em Nova Petrópolis, mas sentiu algo que certamente passaria batido por quem tem visão plena, afinal, qual vidente colocaria as mãos nas obras?
Frequentadora do Instituto da Audiovisão de Caxias do Sul, o Inav, Aline estava no grupo de pessoas com deficiência visual convidado a conhecer o parque que conta a história da imigração alemã a partir de esculturas. O conjunto de obras está disposto em um trajeto de 450 metros — caminho todo calçado e sem degraus, importante para a mobilidade não apenas de cegos, mas de cadeirantes, por exemplo.
A visita realizada no dia 6 de maio, uma cortesia de Heckler e equipe, tinha como objetivo apresentar o novo recurso do parque: a audiodescrição. Disponível desde o final do ano passado, a ferramenta, aliada à possibilidade de tocar as imagens, proporciona a quem não enxerga a chance fazer o passeio como qualquer outra pessoa.
— Deu para criar uma imagem de tudo o que estava sendo descrito para a gente. Fez com que a gente sentisse como se estivesse enxergando naquele momento — expressou Anildo Dall’agnol, 62, também aluno do Inav, após o passeio.
— Como eu enxergava antes, com a audiodescrição a gente sabe do que estava falando e dava para perceber que era muito bonito — completou Osvaldina Lisboa da Rocha, 53, a Dina, com deficiência visual há cerca de seis anos.
Conhecimento
A cada escultura, o grupo aprendia algo sobre as origens germânicas da Região das Hortênsias. E sempre que Heckler citava algum nome em alemão, os presentes repetiam na tentativa de aprender o novo idioma. Na ala dos rostos estilizados, com representantes de imigrantes alemães que povoaram Nova Petrópolis, a surpresa de alguns visitantes ao saber que apenas homens foram retratados. Mas quando chegaram à escultura da família de imigrantes puderam reconhecer a força feminina na formação da região.
Tocaram os pés descalços da mulher e, para ter ideia dos detalhes da obra — a maior do parque, com cinco metros de altura — tiveram acesso a uma miniatura de cinquenta centímetros da escultura.
— Agora dá para saber melhor como é — comentou Aline ao tocar na réplica de madeira.
Fez com que a gente sentisse como se estivesse enxergando naquele momento
ANILDO DALL’AGNOL
Pessoa com deficiência visual
Além do aprendizado histórico, os usuários do Inav se conectaram com a natureza do espaço, que tem 63 mil metros quadrados sendo 40 mil de área preservada. Conheceram algumas espécies de plantas, como a barba de pau, um tipo de bromélia. Em grande quantidade no parque, ela indica a boa qualidade do ar da região. Claro que os integrantes do grupo quiseram tocar para saber como era.
— Foi como se a gente estivesse dentro da história, vivendo os momentos e entendendo as esculturas. Aquele lugar transmitiu paz e serenidade que eu até pensei que seria um ótimo lugar para aplicação de reiki por causa do barulho das fontes — observou Aline.
— É um lugar muito lindo, bem cuidado. Fomos bem recebidos — acrescentou Dina.
"O resumo é felicidade e gratidão"
O passeio, após um longo período de distanciamento por causa da pandemia, representou não apenas a chance de conhecer um novo lugar, mas a oportunidade de estar em contato com os amigos. Usuário do Instituto de Audiovisão há cerca de um ano e meio, Christian Picoli, 45, interagiu pela primeira vez com a maioria dos colegas da excursão.
Durante o percurso entre Caxias e Nova Petrópolis, aproveitou para conversar e dividir as angústias de quem está aprendendo a lidar com a deficiência visual:
— O bom desses passeios é a troca de conhecimento. Saber como a pessoa ficou cega, o que passou até chegar ao Inav.
A visita ao Esculturas Parque Pedras do Silêncio também despertou a memória afetiva de Picoli. Ao passar pela obra que retratava uma senhora fazendo pão em um forno à lenha, lembrou imediatamente da sua nonna. Acostumado a fazer trabalhos manuais antes de perder a visão, também ficou sensibilizado com as obras de arte:
— O resumo é felicidade e gratidão.
Ouça a reportagem:
Experiência mais completa
Em uma sociedade feita por quem e para quem enxerga, iniciativas como a do Esculturas Parque Pedras do Silêncio precisam ser comemoradas. A audiodescrição, aliás, não inclui apenas pessoas com deficiência visual. Conforme Glenda Lisa Stimamiglio, pedagoga especialista em Orientação e Mobilidade com formação em Audiodescrição, o recurso auxilia disléxicos e pessoas com idade mais avançada.
Integrante do corpo técnico do Inav, Glenda reforça que a descrição da imagem possibilita a essas pessoas acompanhar esse tipo de passeio. Ela lembra que existe legislação, desde 2011, prevendo audiodescrição na televisão brasileira.
Nosso espaço é muito visual e essa visita nos emociona. A gente está contribuindo para que essas pessoas tenham uma experiência mais completa
VALMOR HECKLER
Proprietário do Esculturas Parque Pedras do Silêncio
— Em todos os ambientes onde existe essa atividade visual, a pessoa com deficiência visual acaba ganhando informações e possibilitando maior inclusão nesse tipo de espetáculo. A cultura é para todos. É assim que me sinto (em um passeio como esse): participando de um ambiente em que todos são incluídos — destaca.
Para o proprietário do parque, Valmor Heckler, além da satisfação em poder proporcionar uma visita guiada e acessível, há aprendizado no processo. Ao receber pessoas com deficiência visual, é possível entender melhor as necessidades e sanar eventuais problemas.
— A gente se coloca no lugar da pessoa. Nosso espaço é muito visual e essa visita nos emociona. A gente está contribuindo para que essas pessoas tenham uma experiência mais completa — diz Heckler.
Dez pessoas com deficiência visual visitaram o parque. Além de Glenda, Cleidi Batista Favero, pedagoga especialista em Baixa Visão, e Cecília Damim, assistente social do Inav, acompanharam o grupo.
Como surgiu a ideia
A ideia de oferecer audiodescrição surgiu durante a pandemia, quando o parque aboliu os folders e iniciou a construção de um site para substituir o material impresso. A sugestão foi da ex-colaboradora Gabriela Raymundo Altevogt, então estudante de Relações Públicas da Unisinos, em seu trabalho de conclusão de curso. Com ajuda de um grupo de pessoas com deficiência visual moradores de Nova Petrópolis, a plataforma foi desenvolvida.
Os visitantes acessam a ferramenta por meio de um QRCode, disponível somente pela rede wi-fi do parque. Além da audiodescrição, é possível realizar pela ferramenta uma visita guiada em quatro línguas (português, espanhol, alemão e inglês).
— Acessibilidade sempre esteve no foco tanto é que no parque não temos degrau para pessoas cadeirantes ou com alguma dificuldade de locomoção. É todo calçado para as cadeiras de rodas terem deslocamento mais fácil. Certamente, lá no início não tínhamos essa visão de oferecer uma visita mais completa para deficientes visuais. Durante a pandemia, vimos a necessidade de fazer uma plataforma que tivesse os vários idiomas para a visita guiada e junto conseguimos agregar o trabalho de conclusão de uma ex-colaboradora do parque. Entendo como um valor muito importante de inclusão e acessibilidade — destaca Heckler.
Saiba mais
- O Esculturas Parque Pedras do Silêncio inaugurou em 2014.
- O parque conta a história e a cultura da imigração germânica de Nova Petrópolis por meio de mais de 80 esculturas.
- As obras representam a saga dos imigrantes na cidade, seus costumes e tradições, além das principais profissões que ajudaram no desenvolvimento socioeconômico da região.
- O parque fica na Rua Emilio Dinnebier Filho, 560.
- O espaço é petfriendly e oferece área para realização de piqueniques e exposições temporárias.
- O parque é aberto diariamente ao público, das 9h30min às 18h.
- Pessoas com deficiência (PCDs) pagam meia-entrada.