Historiador. Artista plástico. Colecionador. Escritor. Dizer onde começa e termina cada faceta de Juventino Dal Bó torna-se ainda mais difícil ao se percorrer os cômodos e mirar as paredes da casa onde o bom-jesuense radicado em Caxias do Sul vive no bairro Marechal Floriano. Em cada canto que não há uma obra de arte, existe um objeto antigo ou uma recordação pessoal do quase septuagenário, que imprimiu algumas de suas lembranças e sentimentos no livro Vestígios de ontem, talvez: poemas do caderno verde e três cartas de amor e morte, que teve sessão de lançamento na última quarta-feira.
Primeira publicação dedicada à poesia do autor, o surgimento da obra tem a ver com a relação de Juca, como os amigos o chamam, com o refúgio que ergueu em 2010, no mesmo terreno da casa onde morou com a avó, na infância. A fim de liberar algum espaço, em meio aos dias tão iguais da pandemia o historiador aproveitou para se desfazer de parte do material acumulado ao longo de quatro décadas como professor. Ao folhear agendas, documentos e papéis avulsos, deparou com dezenas de poemas escritos ao longo da vida, que nunca chegaram ao público.
– São escritos relativamente íntimos, mas chega uma época da vida em que tu não tens mais intimidade. Tu já te abriste tanto para tantas coisas, que não tem mais sentido – avalia.
Além dos poemas, três cartas escritas em prosa, completam o volume. Entusiasta das epístolas, tanto na literatura quanto na vida pessoal, Juventino, que a tudo guarda, não procede diferente com as centenas, quiçá milhares de missivas recebidas ao longo dos anos, as quais mantém num antigo baú. Ao refletir sobre o hábito de colecionar memórias, suas ou dos outros, percebe-se como o fascínio pelo mais misterioso dos temas é um eixo comum do seu trabalho, se suas reflexões e inquietações.
– O único tema fundamental é a morte. Nossa caminhada é sempre nessa direção – justifica.
É por gostar de remexer na vida dos que já morreram que Juventino pode ser facilmente encontrado garimpando antiguidades no Brique da Redenção, quando visita Porto Alegre. Em viagens pelo Brasil e pelo mundo, o roteiro tem de incluir feiras de antiguidades, onde o olhar já treinado não deixa passar um álbum de fotos ou um utensílio doméstico que já não é mais útil em seu sentido original, mas que ganha sobrevida nas mãos do artista. Nos últimos anos, em que alguns dos melhores amigos se mudaram para outros continentes, descontentes com os rumos do Brasil, ajudar a desmontar suas casas foi um prato cheio para incrementar a coleção de memórias emprestadas:
– Quando se muda de continente é preciso se desfazer de quase tudo, de objetos de uma vida inteira. Tudo isso tem a ver com a morte. Não é que a gente seja apegado, mas é gostar de viver cercado de lembranças, de coisas que remetem a memórias bonitas, ao mesmo tempo tendo presente a finitude da vida.
“Nada é puro no meu trabalho”
O afã por garimpar o corriqueiro, por focar o olhar no que é aparentemente desimportante, nos leva a viajar no tempo a fim de que o historiador Juventino Dal Bó ajude a explicar o artista plástico apaixonado por colagens, e que encontrou sua persona criativa na assemblage – técnica francesa dos anos 1950, que cria a partir de objetos e materiais descartados. Essa foi uma das técnicas que utilizou em duas das suas exposições mais conhecidas: Talvez o Vento Saiba (2016) e Viagens Manipuladas (2013).
A casa em que Juventino cresceu, no interior de Bom Jesus, não tinha livros. Filho de serralheiro, não teve uma infância pobre, mas vivia-se a vida prática, voltada para o trabalho. Soltar a imaginação, só quando as irmãs mais velhas liam para ele as histórias bíblicas. Uma rara obra literária comprada pelo pai foi uma edição em capa dura de Os Lusíadas, de Camões, guardada com carinho especial na biblioteca do historiador.
– Passei anos devorando aquele livro, decorando os versos, apaixonado pelas ilustrações. Até hoje não sei como aquele vendedor conseguiu convencer meu pai a comprá-lo – diverte-se.
Seduzido por histórias épicas, Juventino contrariou a vontade do pai, que queria vê-lo engenheiro florestal, e foi cursar História, na UCS. Pertenceu a uma geração que teve na professora Loraine Slomp Giron, falecida recentemente, uma referência para além da profissão. Mais do que o conteúdo, naqueles anos de Regime Militar, Loraine ensinava os alunos a serem questionadores e a viver o ambiente acadêmico com entusiasmo.
– Um guri do interior vir estudar na Universidade e ver aquela mulher irreverente, que dava aula sentava na mesa, que levava a turma para ter aulas embaixo das árvores do campus. Mais tarde ela e eu discordamos muito, mas isso não invalida o fato dela ter sido muito influente na minha vida e na de tanta gente que a teve como professora – recorda.
Foi, contudo, já graduado, ao especializar-se em História da América Latina, que Juventino teve o primeiro contato com a Escola dos Annales, uma corrente de historiadores franceses que valorizava fontes não documentais, com um olhar mais atento à vida privada como fonte de pesquisa:
– Enquanto na faculdade aprendi as correntes que dão importância ao grandioso, ao oficial, naquela especialização aprendi que há uma linha de historiadores que defendem que se pode fazer História com o piso da casa, investigando de onde veio o tijolo, quem foi que fez o ladrilho. Cada copo, cada cadeira carrega um pouquinho de história da humanidade
Juventino ainda estava fisgado por essa abordagem quando começou a trabalhar no Museu Municipal, dando início a uma carreira de 30 anos como servidor municipal (além do próprio Museu, também dirigiria mais tarde o Arquivo Histórico João Spadari Adami). Além de ter acesso às casas das pessoas que guardavam a história em seus sótãos e porões, como museólogo fez parte de uma turma que ajudou a mudar a forma como Caxias olhava para si mesma:
– Ajudei a montar uma equipe muito legal, que se lançou para a educação patrimonial e preservação da arquitetura, algo que não existia em Caxias. Considero o ano de 1975 um marco para a cidade, porque a comemoração do centenário da imigração italiana no Estado motivou muita pesquisa, e a partir dali surgiram muitas publicações. Nos anos 1980 produzimos muitos vídeos e boletins, tivemos uma coluna semanal no Pioneiro feita pelo Museu, que rendeu mais de 200 páginas de memória da cidade. Era um time que tinha Tânia Tonet, Liliana Alberti, Sônia Storchi, entre outras pessoas que marcaram época.
Da atuação como museólogo para finalmente explorar a veia artística foi um caminho natural, que começou a trilhar treinando o traço nos convites artesanais para eventos relacionados ao Museu. Nos anos 1990 participou das primeiras exposições coletivas, até realizar a primeira individual, com 50 ilustrações e colagens em alusão a Frida Kahlo. Já nos anos 2000, firmou pé na colagem, com exposições inspiradas em caixas de memória – costume alemão de preservar a memória de casais com objetos utilizados no casamento, trazido para o Brasil com os imigrantes – e malas de viagem recheadas com objetos que criam viagens imaginadas:
– As ilustrações a mão para o museu foram o começo. Depois fiz muitos cursos de desenho, de xilogravura, de litogravura, colagens, e nunca mais parei de misturar essas técnicas. Nada no meu trabalho é puro.
Aposentado, só da sala de aula
Desde que se aposentou do Estado e do município e também deixou de lecionar na UCS, Juca Dal Bó passa a maior parte do tempo na sua casa de três pisos, elaborando exposições imaginárias a partir da junção dos milhares de objetos adquiridos nas feiras de antiguidades ou recolhido nas lixeiras de Caxias, que dividem o espaço com livros e coleções de álbuns de fotografia e obras de arte.
Por toda parte há retratos do companheiro Marcos Vinícius, músico e artista plástico com quem viveu por 20 anos, até sua morte, em 2017, provocada por um tumor no cérebro. À perda seguiu-se um período de introspecção e recolhimento físico e espiritual. Porém, a elaboração do luto e as memórias de duas vidas que se encontraram pela arte proporcionaram um renascimento criativo e a vontade de fazer mais.
–Não existe ponto final. Primeiro achei que fosse morrer quando saísse do museu, depois da Universidade. Mas quando a gente se entrega por inteiro para o trabalho, ao sair não fica com saudades. O mundo gira longe do ambiente de trabalho. Há vida em tudo que é lugar, é só uma questão de estar aberto para procurar – medita.
Nesta busca pela vida em todos os cantos, Juventino remexe nas próprias lembranças da infância em Bom Jesus, que, se não foi rica em livros, foi, como ele diz, digna de livro. Sonha em escrever um romance que traga à tona aqueles anos de formação, ambientado nos Campos de Cima da Serra:
– Essa coletânea de poemas (Vestígios de ontem, talvez) é um fruto da pandemia, mas ainda não é o livro que sonho escrever. Tenho outros livros gestando dentro de mim.
Além das letras, acalenta na imaginação inúmeras novas exposições, algumas já materializadas. Nas paredes da garagem, por exemplo, diversas gavetas de madeira, expostas de pé, ganham novos significados como altares para todo tipo de pequenos objetos, que remetem às caixas de memória dos alemães. Deve ser a próxima mostra a ocupar uma galeria.
– Juntar objetos para que eles possam contar uma história se tornou uma febre. Para cada canto que olho tenho uma ideia, uma nova exposição que quero fazer. Posso viver mais 20 ou 30 anos que não vou ter tempo para ficar entediado.
Leia
Obra independente, “Vestígios de ontem, talvez” pode ser adquirida nas livrarias Do Arco da Velha, em Caxias do Sul, e Bamboletras e Nova Roma, em Porto Alegre. Preço: R$ 35.
"Decifrando"
A liberdade para eles
chegou com a espuma de nylon
De toda população de gansos
criados para fabricar os travesseiros
restaram dois...
um casal? dois machos? duas fêmeas?
ninguém sabia
Durante anos
perambularam pelos pátios
pela horta, pelo bosque
nadaram no lago
sempre juntos
Defendiam-se com bicadas
e grande alarido
cuidavam-se
O de penas cor de cinza
desapareceu durante uma tempestade
talvez devorado por algum animal
ou esmagado pelos galhos de uma árvore...
O sobrevivente nos avisou com gritos
desesperados...chorou em vão
por dias e noites
Não comia, nem dormia, só chamava
“chora pelo morto”, diziam
Logo deixou-se ficar inerte
sob o emaranhado da roseira
morreu numa manhã chuvosa
“de tristeza” concluíram
“ou de amor?” perguntei...
poema que está no recém-lançado “Vestígios de ontem, talvez”, de Juventino Dal Bó