No distrito de São Pedro, em Bento Gonçalves, a rodovia Linha Palmeiro oferece uma das mais incríveis paisagens da região. O encontro da natureza com centenárias construções em pedra transporta os visitantes aos primeiros anos da imigração italiana, e ao modo dos colonos viverem e interagirem com o lugar onde se instalaram no século 19. O maior desses casarões, que pertenceu e foi construído pelo pedreiro Pietro Merlin, em 1884, se destaca particularmente por sua imponência, mas também por manter certo ar misterioso: afinal, era uma das poucas casas desabitadas no roteiro Caminhos de Pedra.
O fato dessa relíquia de 400 metros quadrados de área construída, 43 aberturas e três pavimentos estar com as portas fechadas intrigava não apenas os milhares de visitantes anuais do roteiro turístico, mas também a própria Associação Caminhos de Pedra (ACP), que em 2016 propôs aos herdeiros descendentes de Pietro Merlin uma parceria que permitisse o restauro para uso da ACP e a abertura para visitação turística do imóvel, tombado pelo Patrimônio Histórico de Bento Gonçalves desde 2012. Com a ideia prontamente aceita, a inauguração da agora intitulada Casa da Memória Merlin ocorreu no dia 29 de junho, em cerimônia que contou com a presença da secretária estadual de Cultura, Beatriz Araújo. A secretária enfatizou a importância de ações de preservação de memória e patrimônio histórico tanto para a sociedade quanto para o turismo:
– Quando participei da criação da Lei de Incentivo à Cultura busquei uma diferenciação para o segmento de Patrimônio, a fim de que houvesse um incentivo maior do Estado, por se tratar de uma área com menor impacto midiático e menos visibilidade para as empresas. São ações perenes que, ao preservar a memória da família,, preservam também os afetos e fazem a sociedade local e os visitantes de Bento se sentirem mais acolhidos.
Embora a visitação só deva iniciar em agosto, a casa já abriga o escritório da ACP, uma sala para reserva técnica e outra para restauro de obras de arte, um salão para oficinas, cursos e reuniões, e outro com acervo fotográfico das casas de pedra da região – algumas das quais foram construídas por Pietro Merlin. O restauro, que recebeu aporte de R$ 1,2 milhões pelo programa Pró-Cultura RS – Lei de Incentivo à Cultura (LIC), garantiu à entidade o direito de explorar a propriedade pelos próximos 20 anos. A intenção é que a casa passe a ajudar a contar a história da ACP, além de servir para abrigar exposições e eventos culturais e favorecer a comercialização de produtos dos empreendedores da região, com uma loja própria.
– A propriedade da família Merlin sempre teve impacto na paisagem da região, mas faltava a história para ser contada. Como Associação, sempre víamos nessa casa uma oportunidade de poder abrigar a memória e contar a própria história do projeto cultural Caminhos de Pedra. É esse sonho que estamos, enfim, podendo realizar – destaca a vice-presidente da ACP, Beatriz Paulus, que recebeu a reportagem em uma visita à casa na última semana.
MOMENTO DE RETOMADA
Com custo operacional estimado em R$ 18 mil mensais, Beatriz Paulus comenta que os recursos devem ser cobertos pela cobrança de ingressos e também por percentuais das vendas de produtos e obras de arte e artesanato, além de eventuais locações para eventos. A casa deve gerar pelo menos três empregos diretos, que são pessoas contratadas para guiar as visitas e atender o público, de quinta-feira a domingo. A ACP aguarda pelos trâmites da criação da pessoa jurídica da Casa da Memória Merlin para poder abrir as portas e dar continuidade à recuperação da parte externa da propriedade, que deve receber um palco e a revitalização de um lago anexo (que será feita em parceria com a Universidade de Caxias do Sul (UCS)).
– Esta inauguração se dá num momento que a Associação ainda busca se recuperar de uma perda muito significativa de arrecadação, devido à pandemia. O que nos mantém é a mensalidade paga pelos empreendimentos, que teve de ser flexibilizada devido a muitos terem ficado com as portas fechadas durante meses. A intenção é que a casa se torne autossuficiente a partir do seu funcionamento pleno – explica Beatriz.
Trajetória contada em objetos
Como uma das contrapartidas pelo usufruto da propriedade, os proprietários pediram a reserva de um espaço de memória das gerações anteriores, cuja memorabilia foi cedida pelos herdeiros e está exposta como um minimuseu. O espaço preserva o quarto com retrato de parede de Pietro Merlin e da sua esposa, Vera Varaschin, cama e parte da mobília que pertenceu ao casal, inclusive uma mala de viagens.
No cômodo onde era a cozinha da casa original, estão dispostos diversos itens do acervo dos Merlin, como instrumentos musicais, imagens religiosas e até um estojo contendo um terço e um crucifixo, que algum padre de uma época remota usava para dar extrema-unção aos moribundos. Ainda falta material explicativo para contextualizar a história dos objetos e a quem pertenceram, algo que está sendo providenciado pela família.
O minimuseu também abriga preciosidades da antiga marca de azeites Merlin, que pertenceu à terceira geração da família e chegou a ser muito popular no Estado, com fábrica em Porto Alegre. Entre os itens estão antigas latas e recipientes dos produtos, que datam dos anos 1950, honrarias recebidas pela empresa, equipamentos de testes de qualidade, máquina registradora e até um livro-caixa.