Foi no domingo em que tomou posse, em março do ano passado, a única vez que o padre Josemar Conte pôde congregar-se com a comunidade de Coronel Pilar. Logo na semana seguinte, a pandemia já havia afastado os moradores das celebrações religiosas, cabendo ao padre de 72 anos, recém-chegado da paróquia de Cambará do Sul, usar da criatividade para levar sua palavra à população que o religioso viu ter na religião mais do que instrumento de fé, mas também sinônimo de espírito comunitário.
– A população da colônia italiana vive a fé de forma diferente, como parte do seu dia a dia. Se nas fazendas quem manda é o fazendeiro, na colônia eles sempre foram autônomos e levam isso para a vida. Quando precisa pintar ou reformar a igreja, ou organizar uma festa, eles mesmos se organizam e fazem. O padre só vem para agregar – compara.
No Domingo de Ramos, data que marca a entrada na Semana Santa, quando os fiéis partem em procissão até a igreja para que seus animais recebam a bênção, o padre montou em um cavalo emprestado e foi distribuir a bênção nas casas dos moradores, que viviam o auge do isolamento imposto pela Covid-19.
– Se Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento, por que não subir no cavalo para levar a bênção? – diverte-se ao recordar o episódio.
Assim como em tantos outros municípios do interior, a Igreja Matriz se destaca entre as demais construções no centro de Coronel Pilar, município que possui a menor população em área urbana do Brasil, de acordo com o último censo demográfico do IBGE (2010). São 174 moradores que compartilham de uma rotina imperturbável, alterada apenas pela eventual visita de vendedores ou turistas chegados da vizinha Garibaldi pela BR-453. Além da sede, 17 comunidades rurais completam a população de 1.725 habitantes, em sua maioria descendentes de italianos, que têm na atividade vitivinícola a principal fonte de renda.
Quase toda a atividade comercial e serviços públicos se concentram nos três quarteirões da Avenida 25 de Julho, onde de março até o começo deste ano reverberou diariamente a voz do padre Josemar Conte, sempre às 18h. Com os encontros presenciais suspensos, o padre fez uso do microfone e dos alto-falantes para levar alento à comunidade aflita pela ameaça do vírus.
– Era um momento em que todo mundo estava muito perdido, e que eu fazia essa tentativa de dar à pandemia um sentido maior, de oferecer alguma motivação dentro dessa realidade. Que pudéssemos aproveitar o momento para se aproximar da família, que às vezes fica em segundo plano quando a gente está trabalhando demais – conta.
População que representa quase um terço dos habitantes de Coronel Pilar, os idosos encararam a pandemia com incredulidade seguida de resignação, conforme os primeiros casos começaram a repercutir. Moradora da primeira casa que se vê ao chegar no município pelo asfalto, Ana Giovanaz Villa, 84, só sai de casa para ir ao banco e cortar o cabelo. A neta, Roberta Villa, 26, teve de ser drástica para convencer a idosa aderir à máscara e deixar aos cuidados dos mais jovens a fábrica de massas resfriadas e congeladas da família, que teve as vendas impactadas pelo cancelamento das festas de colônia.
– Falei que o hospital de Garibaldi, que atende a nossa região, só tinha três leitos de UTI naquele momento, e ela arregalou os olhos de preocupação: “então nós vamos morrer?!” Mas foi o suficiente para levar a sério – conta a neta, única da família a contrair Covid, após uma viagem para vendas em Caxias.
Longe da bocha e do carteado
Nem só de trabalho e fervor religioso, contudo, se vive em Coronel Pilar. As regras do distanciamento social privaram os moradores de suas distrações entre amigos costumeiras, como os jogos de cartas na bodega e os torneios de bocha no salão comunitário e o futebol. Um dos mais requisitados bocheiros das redondezas, habituado a arrematar troféus nos arredores de Roca Sales, Marcorama e outras comunidades vizinhas, o produtor Armando Lorenzini, 70, diz que as canchas fechadas foram um pesadelo.
– O que me fez sair do campo pra vir morar na cidade foram as dores no corpo, principalmente depois que me acidentei capotando o trator. Mas mesmo com perna doendo, braço doendo, nunca tinha parado de jogar minha bocha. Só mesmo na pandemia, quando os salões fecharam. Mas agora estão liberando aos poucos – comemora.
Dono da bodega instalada em uma casa construída há 130 anos, Derci Telh, 47, que também atende como barbeiro em uma sala anexa, talvez tenha sido o coronel pilarense que mais sentiu a mazela econômica acarretada pela pandemia. Enquanto mercados e armazéns puderam manter as portas abertas, ele teve de fechar por dois meses, por não vender alimentos e assim não se enquadrar como comércio essencial. Chegou a abrir uma lancheria anos atrás, mas teve prejuízo, porque os moradores não têm hábito de comer fora de casa (não há restaurante, nem hotel em Coronel Pilar). O lucro da bodega vem das bebidas alcoólicas, que regam as conversas e os animados jogos de bisca e pontinho, que voltaram a ser permitidos no final do ano passado.
– A pandemia mudou os hábitos. O pessoal vem mais cedo, vai embora mais cedo. Muitos nem vêm, porque a família os seguram em casa. Em tempos normais o carteado ia madrugada adentro – conta Derci.
Frequentador assíduo da bodega, Vanir Rottoli, 61, também é um dos mais conversadores. Entre um gole e outro de cerveja, mostra como as percepções sobre a pandemia podem variar dentro da comunidade, das abordagens mais científicas até as crenças religiosas. Para Vanir, coronavírus é um recado de Deus:
– O capitalismo brincou com a santidade. Olha quanta gente que tem todo o dinheiro do mundo e tá morrendo com coronavírus. Isso é porque Deus está dando um recado, que nem dá quando manda uma enchente ou uma estiada. Ele dá a natureza, mas o homem tem que saber usar. Quem já leu a bíblia sabe que muita coisa ruim ainda vai acontecer por causa do capitalismo. Mas essa é só minha opinião. O senhor sabe...todo mundo que estudou em colégio de padre vira meio filósofo.
Pelas estradas vai a vacina
Crenças à parte, a chegada das primeiras doses das vacinas contra o coronavírus representaram alívio e esperança para os moradores de Coronel Pilar. Nas primeiras remessas foram imunizados os 23 profissionais da Saúde que atuam no município e três terceirizados: dois dentistas e uma instrutora de pilates. Na segunda leva a equipe percorreu o interior até chegar a 12 idosos acamados, que tomaram a primeira dose assim como seus cuidadores.
O primeiro idoso a ceder o braço para a vacina foi Valdemir Portoli, 83 anos. Morador da remota localidade de Picada Resteleira, Valdemir tem paralisia cerebral, e por conta da doença não anda e quase não fala, mas sorri, e muito. Responsável por seus cuidados, a cunhada Marlene Ribeiro, 62, que também recebeu o imunizante, conta que os meses de pandemia foram complicados para o idoso, que sempre voltava revigorado das visitas à cidade, a cada 15 dias.
– Era parte da rotina dele ir às consultas no posto de saúde com a fonoaudióloga e com a fisioterapeuta. Ele gosta muito. Não foi fácil deixá-lo quase 11 meses sem esse tratamento, mas ele entendeu que assim era mais seguro. Este ano ele está indo uma vez por mês – diz Marlene.
Um dos poucos serviços que não ficam na avenida central de Coronel Pilar, o Posto de Saúde é comandado pela secretária de Saúde e Meio Ambiente, Carla Pivatto. Carla avalia que o fato da maioria da população estar no interior conferiu um pouco mais de liberdade a esses moradores para manter suas rotinas entre a casa e a roça. Para evitar o deslocamento até a cidade, as consultas médicas de rotina passaram a ser realizadas por telefone, assim como os exames que não fossem urgentes também deixaram de ser realizados.
– No primeiro momento tivemos de transformar o posto num ambulatório de atendimento contra a Covid, restringido todos os outros atendimentos. Agora a situação está mais controlada e estamos retomando aos poucos. Conscientizar a população no começo não foi fácil. Fizemos campanha com cartazes e panfletos, orientando a todos para ficarem em casa e explicando as razões. Na maior parte do tempo o povo levou bastante a sério, mas a redução do número de casos e a expectativa da chegada da vacina fez muitos relaxarem os cuidados – analisa secretária.
Coronel Pilar soma 54 casos confirmados de Covid-19, nenhum ativo e 17 possíveis casos sendo monitorados. Houve um único óbito de uma mulher de 63 anos, moradora da área rural, que tinha doença pulmonar obstrutiva crônica. Ela faleceu em dezembro.
À espera de um casamento
Sem considerar o fato de que cidades pequenas, limpas e organizadas dão vontade de visitá-las por si só, não são muitos os atrativos turísticos de Coronel Pilar. No entanto, escondida entre as estradas vicinais, a Villa Mattuella é um empreendimento que recompensa os visitantes que saem do asfalto de carro para desbravar a região de carro ou de bicicleta.
Tradicional na região, a família Mattuella adquiriu e restaurou um casarão abandonado construído em 1949 pelo patriarca Dovílio Mattuella, que trabalhava como pedreiro. Envolto por parreirais, o espaço chama a atenção pela mobília luxuosa, quase toda em madeira, lembrando casarões das novelas de época. Diversos casamentos, formaturas e confraternizações de empresas vinham sendo realizadas até o início da pandemia, que fez as portas se fecharem e os lucros minguarem.
– Tivemos até a filha de um ministro que fez o casamento aqui, além de um casal de modelos internacionais. Vínhamos muito bem, mas tudo parou. Só tivemos um casamento menor em dezembro, para 40 convidados. Esperamos poder retomar esse ano, porque o custo de manutenção é alto, principalmente com limpeza e jardinagem – comenta Salete Mattuella, 54, nora de Dovílio.
O lucro com os eventos ajudava a família, que tem como principal fonte de renda a plantação de uvas e laranjas-de-umbigo, a manter outro casarão na mesma propriedade, restaurado apenas para visitação e ensaios fotográficos. A construção em pedra e madeira possui três andares e abriga a adega que conserva os vinhos produzidos pelos Mattuella para consumo próprio ou para servir nos eventos, que a família espera que em breve possam retornar.
O comandante virou padeiro
Dos 10 municípios detentores das menores populações urbanas do Brasil, três ficam na Serra Gaúcha. União da Serra tem a sexta menor, com 280 moradores no perímetro urbano. Cortada pela Rota do Sol, Itati, com 212 habitantes, tem a segunda menor, atrás apenas de Coronel Pilar, com seus 174 coronel pilarenses. E foi sabendo desse dado que Elisandro Rodrigues, 42, e a esposa Manuela Rodrigues, 36, escolheram Coronel Pilar para buscar uma vida mais tranquila.
Natural de São Gabriel, Elisandro é policial militar. Serviu em Porto Alegre e Bento Gonçalves até pedir transferência para Coronel Pilar, onde comprou um sítio antes de assumir o comando da BM local. Para ajudar no trabalho da esposa, que faz pães, Elisandro pediu licença da corporação para abrir uma padaria, numa sala comercial a poucos metros do antigo trabalho.
A padaria tem apenas dois bancos junto ao balcão. O desavisado que chega para tomar um café ouve de Elisandro a negativa prontamente justificada:
- Aqui o pessoal tem o costume de passar na prefeitura pra tomar um cafezinho de graça – conta.
A abertura da padaria logo foi seguida de um revés provocado pela pandemia. O casal havia firmado contrato junto à prefeitura para fornecer pães para a escola de ensino fundamental do município, mas o cancelamento das aulas interrompeu o serviço logo no primeiro mês.
– Ter a garantia da venda para o município foi o que nos motivou a abrir o negócio. Sem essa renda a gente teve de diversificar a oferta e focar no atendimento ao público para conseguir se manter no ramo. Salvos pelo grostoli – brinca Elisandro, citando o biscoito colonial que lidera as vendas na padaria.
Sobre o trabalho da polícia em Coronel Pilar, Elisandro comenta que, embora seja um município calmo, convive-se com o risco de uma ocorrência de vulto, como assaltos a agências bancárias. Já foram quatro. Por conhecer todos os moradores, os policiais reforçam a atenção para o comportamento de quem chega de fora. O fato de ser um desses municípios onde todo mundo se conhece gera episódios embaraçosos.
– Muitos colonos vêm para a cidade nos seus quadriciclos, que deveriam ser usados apenas para o trabalho. A gente pede para que pelo menos coloquem o capacete, mas eles não levam a sério. Por aqui não dá pra levar as coisas a ponta de faca – conta o comandante licenciado.