Há algo de muito simbólico no primeiro cachê recebido por um artista. Afinal, além do papel identitário sempre implícito num trabalho criativo, reconhecer a arte enquanto profissão é um passo além. Receber um pagamento ao fazer algo que se ama e acredita representa uma espécie de aval, uma esperança. Para o artista mirim Pablo da Fonseca Faustino, 14 anos, a possibilidade do primeiro pagamento pela arte foi possível por meio do edital UNO-me, organizado recentemente pela escola caxiense Tem Gente Teatrando. A ideia do edital era investir dinheiro na arte periférica pagando por música, poesia, teatro, livro e outras manifestações genuínas desses lugares. MC Pablo teve a música Passando o Bastão – parceria com seu mentor, Chiquinho Divilas – contemplada no projeto e levou para casa R$ 250.
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Ao acessar seu primeiro cachê, o jovem artista calculou o que faria com o valor. Não foi difícil decidir, concedeu a maior parte do dinheiro para a mãe, Naiara Borges da Fonseca, 31, que está atualmente desempregada e se esforça para criar os três filhos – há ainda Rauan, 12; e Anthony, dois. A família vive no Campos da Serra.
– Num primeiro momento, eu disse “é uma coisa tua, conquistada com teu esforço, compra uma coisa para ti”. Mas ele me deu o dinheiro e disse “compra o que precisa para nós”. Por mais que a gente sempre incentive a responsabilidade, eu fiquei bem comovida – conta Naiara.
Além de umas compras para a casa, o cachê deu também para Pablo presentear o irmão Rauan, que estava de aniversário bem no dia em que ele recebeu o dinheiro, e ainda investir no conserto de sua bicicleta. Mirando o futuro, o primeiro cachê também impulsiona Pablo a planejar um dia poder viver da música:
– Quero seguir carreira, meu sonho é dar o melhor para a minha família.
O talento artístico de Pablo também é fruto de investimento cultural na periferia. Foi assistindo a uma apresentação do rapper Chiquinho Divilas que ele despertou para a música e começou a escrever os próprios versos. Com mais de 20 anos de estrada no universo do hip hop, foi o próprio Chiquinho quem encabeçou a gravação da música e a inscrição no edital UNO-me.
– O primeiro cachê é uma autoestima que vem num momento difícil deles, a música está aí e acho que consegue dar este incentivo – diz o rapper caxiense, referência mais próxima de MC Pablo.
Não à toa, a música parceria entre a dupla se chama Passando o Bastão. Os versos de Chiquinho apresentam o jovem artista do Campos da Serra como um genuíno representante da nova geração do rap. No trecho composto por MC Pablo, a resposta vem cheia de compromisso: “sigo fazendo o meu som, com determinação, com a cabeça erguida e com os pés no chão/E para mostrar para o mundo que a favela venceu, tem que ajudar o próximo e ajudar os manos seus”. Tudo a ver com o UNO-me.
Nós por nós
O edital UNO-me nasceu da inquietação de Zica Stockmans, diretora da escola Tem Gente Teatrando, há 30 anos atuante no cenário cultural caxiense. Nesse tempo, Zica esteve muitas vezes em contato com as periferias, não só levando arte, mas também prestando atenção nas manifestações nascidas naquelas comunidades. Muitas dessas incursões nos bairros foram a bordo do Uno ano 1995 (modelo 1996) que era propriedade do grupo desde 2011. O carro acabou virando peça central do projeto UNO-me. A venda do meio de transporte dos teatreiros rendeu um edital que contemplou 18 artistas/projetos atuantes nas periferias. Cada um recebeu o valor de R$ 250.
– Todos os trabalhos selecionados têm em comum, além da poesia, uma energia de força, luta, construção, denúncia, esperança. Está tudo aí. Só precisamos conhecer, aprender, trocar – diz Zica.
Ao contrário da maior parte dos editais, que surgem da iniciativa pública ou encabeçados por empresas de grande porte, o UNO-me nasceu dentro de um grupo de teatro, atuante numa cidade de interior, e que também tem sentido na pele as amarguras da crise do setor cultural ocasionada pela pandemia. Mesmo assim, Zica e sua trupe pensaram em uma forma de causar impacto apoiando outros artistas.
– É neste contexto de aproximação e exercício de escuta que surge o edital UNO-me. É o artista solidarizando com o artista, é o “nós por nós” muito além da verba (simbólica), é a provocação, o questionamento sobre a invisibilidade, o racismo, a exclusão, sobre o que se considera arte, por quem e para quem é feita, é sobre o (não) acesso aos mecanismos públicos de fomento, “pela geral”. O UNO-me foi um grito, que ainda está ecoando – defende Zica.
Na arte, uma saída
Uma característica comum na história dos artistas da periferia é que a maioria deles foi, em algum momento, salvo pela arte. É como um ciclo que leva em conta a lógica do “quero que a arte faça pelos outros o que um dia ela fez por mim”. A história de Rafael Rosa da Costa, 34 anos, segue esses moldes. O caxiense, hoje morador do bairro Salgado Filho, passou boa parte da infância nas ruas, longe da família e perto da violência e das drogas. O acesso a um projeto social de arte e cultura, aos 14 anos, foi o responsável por resgatar sua autoestima e abrir o caminho artístico que ele trilha hoje.
– Não me vejo fazendo outra coisa, senão trabalhando com arte, ela resgata jovens. Foi onde encontrei uma saída. A arte salva, é inspiradora, te faz botar para fora, te faz sonhar – explica o músico.
Na carreira artística, Costa é conhecido pela alcunha Nego Drama. Além de atuar como MC, ele também é envolvido com teatro e ensina Jiu-Jitsu em projetos sociais. Sem conseguir sobreviver de arte, ele também trabalha como chapeiro numa casa de lanches de Caxias. Assim que teve acesso aos R$ 250 do edital, investiu no que era mais urgente.
– Fui no mercado comprar umas coisas, leite e bolachas para os meus piás – conta ele, pai de Zayan Ricardo, nove, e Rafael, seis.
Nego Drama conta que o valor recebido, mesmo que simbólico, merece ser celebrado enquanto iniciativa inspiradora aos participantes:
– É incrível o que a Zica (Stockmans) fez, é acreditar nos artistas.
Fazendo a diferença
Foi no bairro Belo Horizonte, em Caxias, que Douglas Gonçalves da Silva Ribas, 24 anos, despertou para a arte. Na época, tinha 11 anos e fazia parte de um centro educativo dedicado a crianças e adolescentes. Vivendo ainda no bairro, hoje é ele quem impacta positivamente na vida da molecada que mora lá.
– Isso impactou minha vida, então, há razões para impactar outras vidas – defende.
MC Pato, como é conhecido, ajuda a organizar batalhas de rima, é poeta e também encabeça o projeto Juventude Viva, que propõe articular a promoção da cultura negra em escolas. A atuação como artista e educador preenche a alma de Pato, mas ele também precisa trabalhar como garçom e auxiliar de carga e descarga para conseguir sobreviver. O valor recebido pelo edital veio fortalecer o sonho do reconhecimento.
– Tenho uma música na rua e, com o valor que o edital me proporcionou, vou conseguir gravar mais duas músicas até o fim do ano. Me ajudou um monte, foi algo que a arte me deu para eu conseguir seguir fazendo minha arte – reflete o MC, animado.
Reproduzir cultura
Conhecido no cenário do hip hop caxiense, o MC Maurício Abel, 34 anos, vai investir o valor recebido do edital UNO-me na reprodução do livro Mais Quadros, Músicas e Livros – Menos Algemas, Trancas e Grades. A obra – que traz um pouco da biografia do músico, além das poesias criadas por ele – é instrumento para ações socioculturais em centros comunitários, escolas, projetos educacionais, casas de acolhimento, etc. Como a obra foi lançada de forma independente, Abel vai usar os R$ 250 para reproduzir algumas cópias – ele acredita que será suficiente para pelo menos 20 exemplares. Desta forma, a arte circula e gera renda (com a venda dos livros).
Abel conta que, apesar das duas décadas de atuação no cenário cultural caxiense, nunca conseguiu aprovar um projeto pelo Financiarte, a ferramenta de fomento oferecida pela prefeitura de Caxias. O MC elogia a iniciativa do UNO-me justamente por desburocratizar o processo que tantas vezes foi barreira para os artistas da periferia.
– É uma atitude de muita empatia enxergar o artista da margem, que carrega junto a missão social da descentralização. O edital entendeu que essa galera tem mais dificuldade de aprovar projetos num edital público – diz.
Abel conhece muitos dos demais artistas contemplados com a iniciativa e acredita que o dinheiro vai reverberar de inúmeras formas positivas.
– Caiu nas mãos de quem vai investir em arte e, quando eu digo investir em arte, pode ser que o cara vá comprar uma cesta básica, ele está se alimentando para investir na arte dele. Sei de gente que vai pegar o dinheiro e comprar tênis para os filhos. Isso é investir na arte, porque, no momento que ele botou um tênis no pé do filho, vai ter condições psicológicas de sentar e escrever a música dele de forma mais saudável – reflete.
Em defesa da poesia
Rebecca Pietra de Jesus Dutra, 13 anos, é uma das moradoras do Euzébio Beltrão de Queiróz que será beneficiada por um dos projetos aprovados no edital UNO-me. Ela estará ao lado de outras crianças e adolescentes do bairro na oficina de Lambe-lambes com Trechos Literários, que deverá ser realizada em breve por lá. Na atividade, Rebecca terá a oportunidade de exercer uma de suas atividades preferidas: escrever. A guria, fã de Erico Verissimo, tem investido suas fichas na poesia. Um de seus trabalhos no gênero, aliás, foi escolhido para integrar um livro.
– A literatura me traz alegria, começo a viajar dentro dela. É um momento feliz de reflexões – diz Rebecca, que tem pensando em seguir carreira como escritora.
Apesar de ampliar horizonte culturais participando das ações do projeto social Crianças e Adolescentes no Esporte (CAE), a guria acredita que os jovens da periferia ainda possuem poucas alternativas de acesso à arte. Nesse sentido, a oficina de lambes, viabilizada pelo UNO-me, se torna ainda mais importante.
– A gente vai fazer poesia e espalhar pela comunidade – anima-se ela.
Construção social
A poeta e slammer Polliana Abreu, 26 anos, enxerga o UNO-me como uma ferramenta repleta de simbologias. Para a artista, a iniciativa foi encorajadora em mais de um sentido. Um deles é o da inclusão.
– Quem vem da periferia, quem faz arte marginal, tem muito mais dificuldade em se enquadrar em processos burocráticos de editais. Acho que esse edital (UNO-me) surge com a proposta de incentivar a gente a participar, botar a nossa cara para ganhar grana com nosso trabalho – argumenta ela, que usou o valor recebido por sua poesia para pagar contas domésticas.
Para Polliana, a iniciativa da Tem Gente Teatrando também reforça uma responsabilidade de construção social. O edital traz embutido em si uma consciência de que é preciso estreitar distâncias, e de que é possível trilhar um caminho melhor quando se trabalha unido.
– É entender que, sim, existem pessoas que têm menos acesso e, sim, existe uma responsabilidade de outras pessoas que acreditam na construção social em viabilizar caminhos para sujeitos periféricos – aponta.
Foco nas crianças
O rap foi a primeira ferramenta utilizada por Patrick Duarte da Silva, o Seco, como tentativa de dar voz aos seus. Antes de subir num palco pela primeira vez, a convite do amigo Maurício Abel, o MC pensava “quem vai querer escutar quem não tem voz?”. Depois de algumas apresentações, entendeu que sua missão estava justamente ligada a isso: ser voz dos que não têm. Sem nunca ter gravado um disco, Seco foi investindo na carreira musical paralela a outros empregos (atualmente, é auxiliar em obras de casas de madeira). Nesse caminho, uma inquietação sempre o fez refletir sobre sua função enquanto artista.
– Tinha uma frase do Sabotage (rapper) que ele falava “para a droga basta um simples não”. E eu pensava, não é um simples não, é bem mais difícil que isso. Mas se a gente conseguir fazer as crianças dizerem um não antes de dizerem o sim, daí seria mesmo mais simples. Para isso, eu tinha que atingir as crianças. Se a gente conseguir pegar eles antes, pode ser mais fácil para abrir opções – concluiu.
Foi assim que surgiu o grupo de teatro de bonecos Favelecos. Atualmente com cinco integrantes, a trupe passa mensagens educativas que ensinam sobre o poder do respeito e da tolerância, o perigo das drogas, a importância da reciclagem, entre outros.
– Tudo que eu digo para as crianças não fazerem, eu já vivenciei na pele. Quero mostrar para elas não irem no mesmo caminho que um dia eu fui – argumenta Seco, morador do bairro São Caetano.
A prova de como o edital organizado pela Tem Gente Teatrando alimenta um ciclo muito especial é que o próprio Seco destinou parte da verba para apoiar outro artista (que não estava no edital), artesão responsável por confeccionar os fantoches usados pelo grupo.
– Ninguém está aqui por dinheiro, é pelas crianças, pela esperança de um dia ver nosso povo voltar a sorrir – diz.
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