De uma das cinco estantes repletas de livros e cadernos que circundam seu atelier, Frei Celso Bordignon retira a réplica de um astrolábio que ganhou de uma amiga, anos atrás. O fascínio pelo souvenir, réplica do instrumento esférico que auxilia navegantes a guiar à noite, ajuda a explicar porque o artista plástico usa o termo ‘percurso’ para se referir aos 40 anos de dedicação profissional à arte, a serem celebrados com uma exposição a partir do próximo dia 11, no Centro de Cultura Ordovás (da qual falaremos no final da reportagem).
– Percurso, ou caminhada, tem muito a ver com o que eu penso sobre a vida do artista. A gente desenvolve a sensibilidade e o gosto pela arte muito cedo. Pode ser quando faz um desenho e recebe um elogio do professor na escola, por exemplo. Quando eu era criança, uma das minhas três irmãs, que cursou a Escola Superior de Belas Artes, me deixava usar os materiais dela para desenhar e pintar. Foi uma paixão anterior a que tive por São Francisco de Assis, mas que passou a andar lado a lado – conta o frei, enquanto passa o café para as visitas.
Geograficamente, o percurso inicia em Cachoeira do Sul, cidade natal de Frei Celso; passa pelo convento dos capuchinhos em Flores da Cunha, onde iniciou a vida religiosa aos 21 anos; segue para Porto Alegre, onde cursou Teologia na PUC; embarca para São José do Norte, no Sul do Estado, enviado para cumprir missão da Igreja; voa para Rio de Janeiro e Roma, cidades em que morou a fim de se dedicar com mais afinco ao estudo da arte; e desembarca em Caxias do Sul, em 1994, para residir no Convento Imaculada Conceição, sua morada atual.
O caminho artístico foi trilhado por estas andanças. Nos primeiros desenhos, era recorrente a alusão ao martírio de Cristo, tema que o fascinou conforme teve maior contato com a teologia da libertação. Ao exercitar a pintura, deu vida a bichos e bestas que ainda o miram das paredes do atelier. Nos anos 1990 apaixonou-se pela iconografia bizantina, que concentra boa parte da sua obra. À produção criativa uniu-se outra paixão: o restauro de obras de arte, com o qual teve primeiro contato no Rio de Janeiro, e aprofundou na Itália, cursando mestrado e doutorado no Instituto Papal de Arqueologia Cristã, em Roma.
– Sempre fui de me ocupar muito. Tornar-me um restaurador me exigiu conhecer ainda mais as técnicas de pintura. Quando morei na Itália, nos três meses de férias eu passava um trabalhando em algum hospital, como capelão, outro viajando pelo país, e outro fazendo cursos de iconografia. Queria sugar tudo o que podia, sem perder tempo – conta.
Com a formação consolidada, o frei capuchinho passou a se dedicar também ao magistério. Lecionou Cultura Religiosa na PUC-RS, e História Antiga, Desenho e Pintura na UCS. Atualmente ministra oficinas e cursos em seu atelier junto ao Museu dos Frades Menores Capuchinhos, o MusCap, do qual é diretor. Mestre exigente, estimula os alunos a jamais usar a borracha para apagar um traço imperfeito. Assim como na vida não se desfaz um passo dado, na arte todo risco é parte do processo e deve constar na obra final. Outra dica, que o faz levantar da cadeira para retirar da estante cadernos repletos de anotações a lápis e canetas, é escrever.
- Se tu és artista, tens que escrever o que tu sentes e o que tu vês. Depois tu vais dizer também pela cor e pela linha, mas tu tens que registrar também em palavras aquilo que te vem à mente. Porque o pensamento voa, e a palavra fica. É bom ter sempre um caderno para anotar aquelas ideias boas que vêm. Porque a mente está sempre trabalhando, até quando tu estás dormindo. Mas se tu não registrar, aquilo vai embora. Também acho importante colocar a data em cada anotação e cada desenho, para ter essa noção melhor da tua evolução. Porque os outros vão dizer o que quiserem, mas tem mais valor o que tu dizes de ti mesmo. E não existe artista sem reflexão sobre o seu processo – define.
"ARTE É TRABALHO E CONHECIMENTO TÉCNICO"
O artista plástico Christian de Lima, técnico em museologia e aluno de desenho e pintura de Celso, com quem trabalha e convive diretamente no MusCap, destaca no mestre algumas virtudes principais:
– Celso é um professor muito rígido, o que é ótimo, pois te faz dar o teu melhor, mas muito generoso. Ele está sempre aberto a disposto a compartilhar todo o conhecimento que tem, seja para novos artistas ou para pessoas que apenas têm curiosidade. E como pessoa, mas também respingando no lado artístico, aprecio nele a valorização do ser humano, sempre ressaltando a importância para o artista de estar com os olhos abertos para enxergar e compreender o outro.
Historiadora da arte e escritora, a bento-gonçalvense Cristine Tedesco considera frei Celso o seu “pai intelectual”, principal mentor de sua pesquisa sobre a pintora renascentista Artemisia Gentileschi, cuja tese resultou em um dos livros mais vendidos nas livrarias da Serra nos últimos meses.
– Conheci o Celso, em 2010, quando fiz um curso de restauro de obras raras, e desde então ele tem sido uma dessas pessoas em minha vida. Professor, mestre, amigo, grande incentivador de minha pesquisa. Alguém que aponta muitos caminhos, sempre na direção da arte, da cultura, da história e da preservação da memória. Sou muito grata por aprender com ele que o conhecimento deve nos tornar mais humanos e sensíveis – elogia a amiga e aluna.
Também amiga pessoal, a artista plástica Beatriz Balen Susin vê em frei Celso um homem que se destaca pela coerência:
– Celso traz uma capacidade de pesquisa e conhecimento primoroso das técnicas, mas se torna ainda mais admirável pela coerência do fazer artístico com o seu modo de pensar.
Ao mesmo tempo em que exaltam a amorosidade, amigos e pupilos ajudam a compreender a premissa básica da reflexão de Frei Celso sobre o próprio ofício. Na sua concepção o verdadeiro artista é, antes de tudo, um trabalhador:
– Pintura é trabalho, desenho é trabalho. E conhecimento técnico. Tem que trabalhar, tem que pensar, elaborar as imagens e as formas para mostrar às pessoas coisas que elas não veem. O artista plástico, assim como o escritor faz com as palavras, empresta o olhar dele para o outro enxergar através dele. E por isso arte a arte não é hobby, nem passatempo. Alguém pode desenhar ou pintar por hobby, mas sem pretensão de ser artista. No sentido verdadeiro ser artista é pesquisar sobre arte, ler sobre outros artistas, trocar ideias, e se deixar avaliar.
Museu, espaço vivo
Como uma extensão da mente fervilhante de ideias de Celso Bordignon, o Museu dos Frades Menores Capuchinhos, no bairro Rio Branco, traduz a ideia do artista sobre a verdadeira função do espaço, para além da mera conservação de um acervo. Em dezembro, o MusCap irá completar 20 anos como um local dedicado a fazer circular e assim gerar mais conhecimento, que seja acessível e aberto a todos e todas:
– Como a própria palavra original do latim diz, museum é onde habitam as musas, aquelas que inspiram a arte, a poesia, a dança, a História. Não é um amontoado de coisas antigas, velhas, paradas. Tem de ser um lugar vivo, dinâmico e inclusivo, que traz pessoas de todas as crenças e condições sociais. Isso que nos motiva a fazer oficinas com crianças, mostrar a horta do convento para falar de educação ambiental, falar de educação patrimonial, propiciar concertos, teatro, dança polonesa, oficina de tai chi chuan, aulas de modelo vivo. É ser um centro cultural vivo que irradia cultura, que preserva a história, mas que não é uma múmia – diz.
Por ser uma figura ao mesmo tempo religiosa e do meio artístico, é claro que uma mente tão inquieta quanto aberta não se priva de opinar sobre a mistura entre religião e arte e religião e política. Sobre as polêmicas envolvendo a nudez em imagens sacras, o frei capuchinho – que em 2018 orientou o artista plástico Rafael Dambros na exposição Santificados, cuja visitação por estudantes da rede municipal chegou a ser proibida pelo então prefeito Daniel Guerra – critica o falso moralismo dos caretas.
– Não há nada de novo na nudez na arte. Os deuses gregos eram todos representados nus. No renascimento há muitas imagens de Jesus nu. É uma ideia, um conceito, mas para essas pessoas tudo se reduz ao pênis. É uma hipocrisia muito grande – condena.
Quanto à política, Bordignon considera que a religiosidade é, antes e acima de tudo, uma escolha pessoal, que não deve ser imposta, nem estar associada a cargos públicos:
- O estado é laico e o político deve trabalhar para o bem comum, sem puxar para nenhum lado. A religião é uma questão pessoal, privada. Tu tens a liberdade de ter a tua religião, o teu culto, mas sem querer que ela seja modelo para ninguém. Se a tua religião diz que tu deves fazer o bem, faça um trabalho social. Mas não se meta numa questão administrativa, não como autoridade religiosa. Não se mistura o poder administrativo com questões pessoais.
Exposição e oficinas
Os 40 anos de dedicação à arte serão celebrados com a exposição Ars- Artis, que reunirá 47 obras de Frei Celso, datadas desde 1980. A mostra poderá ser conferida presencialmente na Galeria de Arte do Centro de Cultura Ordovás, de 11 de setembro a 25 de outubro, ou também online, pela plataforma digital da Unidade de Artes Visuais da Secretaria Municipal de Cultura. A curadoria é de Christian de Lima.
A programação também inclui duas oficinas virtuais que serão ministradas por Frei Celso. A primeira, “As Técnicas Pictóricas Na História da Arte”, será no dia 23 de setembro, às 19h. A segunda, “Técnica da Pintura a Têmpera e Encáustica”, será no dia 17 de outubro, às 9h. Ambas têm inscrições abertas pelo e-mail uniartes@caxias.rs.gov.br.