Dar dignidade ao último ato da vida de quem parte e conforto à família na despedida é o ofício que Angelista Granja, Jéssica Bordin e Venilce dos Santos, três psicólogas cerimonialistas, realizam com paixão em uma funerária caxiense. “Memória e Saudade” é o protocolo que há cinco anos foi criado pelo Grupo Formolo como forma de humanizar as cerimônias realizadas no Memorial Crematório São José, em Caxias do Sul.
Com ouvidos atentos, as cerimonialistas entrevistam as famílias para embasar textos que serão lidos no ato final da cerimônia, e posteriormente entregues em cópia impressa, junto com a urna que guarda as cinzas do ente querido. As conversas ocorrem presencialmente, após a família resolver a parte burocrática da cremação. Durante a pandemia, contudo, têm sido feitas por telefone. As homenagens passeiam pelas memórias mais edificantes dos mortos, podendo vir à tona desde uma simples paixão por grostoli, pelas pescarias ou pelo time do coração, até suas maiores realizações e traços marcantes de personalidade. Nada, é claro, que vá contrariar a ideia de que é alguém muito especial que se despede
– Estou convencida, pela experiência neste trabalho, de que a morte faz emergir a beleza da vida e as boas memórias prevalecerem. Aquilo que não foi bonito deixa de ter significado. Quando conversamos com as famílias, no começo elas estão chorosas, mas logo começam a sorrir e até a rir das histórias mais divertidas que tiveram o privilégio de dividir com a pessoa querida – destaca Angelista.
Os protocolos são reservados às cremações por serem cerimônias em que a funerária consegue ter uma gerência maior, enquanto os discursos finais nos velórios seguidos de enterros costumam ficar mais a cargo dos líderes religiosos. Idealizadora do projeto, que ocorre desde 2015, Angelista, 50 anos, explica que a motivação surgiu do fato de achar as despedidas fúnebres muito carregadas de emoções negativas, como se o próprio adeus fosse um fardo. Não via razão para que o momento não pudesse ser aproveitado para celebrar a vida e a importância de quem encerrou sua passagem, como forma de suavizar os momentos de luto. Além da leitura do texto, as cerimônias podem ter músicas, alguma leitura de poesia e chuva de pétalas antes do caixão ser colocado na esteira.
– A morte desestrutura todo mundo. É o momento que a gente sente mais fragilidade. Daí a beleza de poder ajudar a cuidar das pessoas na sua dor e na tristeza. Um cerimonial bem feito é uma forma muito bonita de cuidar da última instância da vida – conta.
Trabalho e propósito
Última a ingressar na equipe, há pouco menos de um ano, Venilce, 52, que também atua como terapeuta familiar, exalta o quanto o resgate e a exaltação das memórias são capazes de trazer novos sentido de vida também a quem as escreve.
– Tu não tens como tornar o luto um momento feliz, é claro, mas podes ajudar a dar um novo significado. Como psicóloga, esse serviço é de longe o que mais me dá a satisfação de estar fazendo algo de bom pelo próximo. Poder colocar teu coração para que as pessoas saiam dessa experiência com algo no que possam se agarrar para sentir um pouco de alento, é muito bonito. Transformou minha própria maneira de olhar para a morte e também para o sentido do meu trabalho – comenta.
Mais jovem da equipe, Jéssica, 29, conta que entrou abraçou essa área por uma identificação que surgiu durante a faculdade, com estágio em atendimento de pacientes em fase terminal. Antes de entrar na Formolo, fez uma formação específica em luto e perdas, que deu mais embasamento teórico e a aproximou ainda mais do tema que hoje coloca em prática no dia a dia.
– Proporcionar às famílias um espaço para que eles possam falar sobre aquela pessoa importante, num momento difícil, é algo que acalenta o coração. Eu vejo que a morte ainda é um tabu: quem está enlutado não se sente à vontade para falar e as pessoas próximas às vezes evitam porque não querem fazê-las chorar, sendo que falar sobre a pessoa é uma forma importante de elaborar o luto, algo necessário para dar concretude à morte. O luto nunca é superado, ele sempre é acessado pela memória. Mas é possível se adaptar e seguir em frente - ressalta Jéssica.
Amizade e identificação
Em novembro do ano passado, a jovem Kathia Donin, 21, perdeu a mãe, Ana Laura, que tirou a própria vida. Coube a Venilce fazer produzir o texto-homenagem do cerimonial. Sem poder ter contato com a família, que mora em Fagundes Varela e estava em deslocamento para a cerimônia, a cerimonialista recorreu às redes sociais para, através das postagens da mãe e dos três filhos, captar um pouco de como era a relação e colocar no papel.
A sensibilidade da psicóloga ao captar a essência da relação ajudou a menina e seus irmãos a lidar melhor tanto com a perda quanto com as lembranças, aceitando que a mãe havia partido. Entre Kathia e Venilce nasceu uma amizade que segue até hoje:
– Foi uma mensagem que caiu como uma luva e que vou levar para a vida toda. Meus irmãos e eu ficamos com a sensação de que nossa mãe falaria exatamente aquelas palavras. Chegou a arrepiar. O texto está guardo junto com as nossas recordações mais importantes, num cantinho especial – conta a menina, que semanas depois da cremação foi com os irmãos até Torres para jogar parte das cinzas de Ana Laura ao mar.
Para a psicóloga, o desafio ensinou que vale a pena até mesmo improvisar para tornar o cerimonial o menos impessoal, mesmo quando não há condições de alcançar as memórias pela conversa:
– Foi um texto em que me coloquei no lugar da pessoa que partiu, tentando entender como era aquela relação e o que aquela mulher diria aos filhos se tivesse a oportunidade de se despedir. Ver o quanto significou para eles foi muito especial e, a partir dali, soube que era válido tentar superar as circunstâncias que às vezes impedem o contato mais próximo, e que me obrigariam a fazer uma mensagem padronizada e impessoal.
Dois meses mais tarde, os papéis se inverteram, quando Venilce perdeu o seu pai da mesma forma que Kathia perdeu a mãe. Foi, então, a vez da menina oferecer carinho::
– Eu sabia que era alguém que entenderia o que eu estava sentindo. E ela expressava uma gratidão tão grande pelo que eu pude representar naquele momento triste dela, que sabia que a recíproca seria verdadeira. Foi um colo à distância que ela me ofereceu como gratidão – relata a psicóloga.
O homem que elaborou a própria despedida
Quando travava as últimas batalhas de uma guerra que se anunciava perdida para o câncer, o advogado caxiense Gilberto Fistarol, 68, tratou de encaminhar sua partida da forma mais leve e organizada possível. Duas semanas antes de morrer, em fevereiro do ano passado, Gilberto procurou o Grupo Formolo e manifestou seu desejo de organizar a própria cerimônia de despedida, concedendo ele mesmo a entrevista que iria revisitar sua vida, e escolhendo as músicas que seriam tocadas, como Prelúdio n. 2 (Paz do Meu Amor), de Taiguara.
– É uma despedida muito bonita, que traz à tona tudo de bom que a pessoa viveu e como ela marcou e foi marcada pelas pessoas que conviveram com ela. Tira da morte aquele lado mais duro, sufocante. Pelo fato de ter sido uma cerimônia que meu marido preparou em cada detalhe, declarando em suas últimas palavras o amor que sentia por mim, foi emocionante. Pude sentir a presença dele na voz da cerimonialista. Foi um fechamento com chave de ouro – conta Vânia Fistarol, viúva de Gilberto.
A história de Gilberto é uma das que mais marcaram a trajetória de Angelista, escolhida para ouvir o idoso e preparar o texto. A psicóloga conta que tem separadas algumas das homenagens mais marcantes feitas pelo Memória e Saudade ao longo dos cinco anos do serviço, e que pretende publicar um livro reunindo os relatos mais emocionantes.
Perdas mais severas com a Covid
Além de arrancar pessoas queridas do convívio de seus familiares a amigos, a morte por Covid-19 carrega um elemento particular de dramaticidade, que são as restrições para realizar a despedida. Em casos suspeitos ou confirmados de morte pela doença, a cremação ocorre atendendo a requisitos de segurança, como o distanciamento, limite de pessoas e caixão fechado. A leitura ocorre normalmente, só não é feita a entrega de flores para os presentes, para evitar o contágio pelo contato.
– A gente observa dois complicadores durante a pandemia. O primeiro é ser um luto com impacto dobrado: pessoal e coletivo, por conta do isolamento, da perda da liberdade de ir e vir. Luto não é só sobre morte. Outro é a solidão desse momento, que faz com que as pessoas vivenciem suas perdas ainda mais solitárias, sem poder passar por rituais importantes, como poder tocar uma última vez, escolher a última roupa. Às vezes elas estão separadas desde o hospital e ficam com aquele sentimento incompleto de não ver a pessoa uma última vez nem no caixão. A gente precisa ter um olhar ainda mais atento para essas pessoas: ligar, mandar mensagem, isso é muito importante – analisa Jéssica Bordin.
Mesmo para quem já é acostumada a tratar da morte e do luto, há situações com os quais é difícil não tremer de emoção. Além das perdas traumáticas pela pandemia de coronavírus, Angelista Granja considera que mortes de criança são as que tornam mais difícil realizar o cerimonial.
– É um sofrimento duplo, porque a gente sofre pela criança e pelos pais que não puderam ver seus filhos crescerem. É muito diferente de dar adeus a uma pessoa que cumpriu com a sua trajetória de vida e partiu quando chegou sua hora – lamenta.