O racismo é um muro obtuso e obsceno. Nem sempre visível, mas sempre presente. Ignorar que exista é deboche. Porque mesmo quando não dito por meio de uma palavra de ofensa, o olhar, revela quando a presença de um negro é incômodo. O tema volta à cena de uma forma midiática, com as recentes mortes do menino carioca João Pedro Mattos Pinto e, do norte-americano George Floyd. João Pedro era um adolescente negro, de 14 anos, que foi baleado durante uma operação policial em São Gonçalo, município da Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro.
George Floyd, também negro, de 46 anos, teria sido morto por conta do estrangulamento provocado pelo policial Derek Chauvin. A cena, gravada e disponibilizada nas redes sociais e, exibida em todos os canais de televisão do mundo, mostra claramente Chauvin pressionando o joelho sobre o pescoço de Floyd por cerca de 8 minutos. Imobilizado, Floyd foi perdendo a respiração, enquanto repetiu por várias vezes: "Eu não consigo respirar… eu não consigo respirar", até apagar.
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Floyd morreu no dia 25 de maio, em uma operação policial por supostamente pagar uma conta em uma mercearia com uma nota falsa de US$ 20, conforme noticiou a imprensa norte-americana. E dizer mais do que isso é especulação, porque vai depender das investigações e do julgamento dos acusados. Além de Chauvin, devem ser indiciados Tou Thao, Thomas Lane e J. Alexander Kueng. Os quatro já foram desligados do Departamento de Polícia de Minnesota, um dos maiores centros financeiros, imobiliários e industriais da região norte dos Estados Unidos.
A morte de Floyd é simbólica, não porque é um policial branco que mata um homem negro. É também simbólica porque o Chauvin asfixia até Floyd silenciar. O racismo não é apenas a palavra que machuca, fere e menospreza. Porque o racismo feroz e eficaz silencia a voz do outro. O ex-jogador de futebol, Paulo César Caju, que driblou tantos adversário em campo, deixou de lado os comentários esportivos, em sua coluna no site da revista Veja, para expressar a sua revolta:
"Precisamos afastar esses joelhos de nossas gargantas e nos livrar, definitivamente, dessa tentativa de asfixia, principalmente dessa desigualdade educacional, afinal quase sessenta anos depois de ser barrado em um clube por ser negro, ainda sigo, sem ar, escrevendo sobre esse tema em busca de uma solução, de um basta".
Em 1978, Maya Angelou publicou Still I Rise, poema traduzido para o português como Ainda assim eu me levanto. Mais do que um manifesto político, o texto revela a necessidade da persistência do discurso, uma luta que pode atravessar gerações - como infelizmente tem ocorrido -, mas necessária enquanto o racismo continuar a silenciar a voz do outro.
Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.
Ainda assim eu me levanto é um discurso de sobrevivente. Ignorar que o racismo existe, só tem alimentado atitudes racistas. É o que revelam os entrevistados dessa reportagem. Todos eles negros, de metalúrgicos a docentes, alguns com diploma de mestrado, ou até com cargos de destaque na sociedade. Mas todos eles contam como é a vida de quem sobrevive, apesar das ofensas, indiferenças, e de como a morte por causa da cor é uma realidade, não apenas nos Estados Unidos, mas em Caxias do Sul também.
O discurso de sobrevivente que empedrou a atual geração vem do Racionais MC's, que em 1997 lançou o disco que é considerado o mais importante do rap brasileiro. Uma das músicas do CD Sobrevivendo no Inferno, se chama Capítulo 4, versículo 3, que inicia com a citação de dados estatísticos:
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto mais um sobrevivente
Seguindo nessa linha, quem sobrevive às asfixias do racismo, não vai parar de falar. E nem pode. Porque muito tempo depois do fim da escravidão, quando negros eram acorrentados e tratados como animais, servindo como força de trabalho forçado, o racismo ainda ecoa na sociedade. No livro Escravidão - Volume 1, de Laurentino Gomes, o autor cita uma frase do historiador Eric Williams, que sintetiza a necessidade de lutar contra quem asfixia o negro: "A escravidão não nasceu do racismo; mas o racismo foi a consequência da escravidão".
Suporte para a comunidade negra
O Conselho Municipal da Comunidade Negra (COMUNE), foi criando por meio da Lei Municipal Nº 6.264, promulgada pelo então prefeito Pepe Vargas (PT), em 18 de agosto de 2004. Desde então, o órgão tem por finalidade promover atividades que visem à defesa dos direitos da comunidade negra e à eliminação das discriminações que a atingem. É composto por 18 membros titulares e respectivos suplentes: nove representantes de órgãos do Governo Municipal e nove de entidades da sociedade civil representantes da comunidade negra.
Uma das mais recentes solicitações, feita ainda antes de estourar a pandemia do coronavírus por aqui, segundo relato do atual presidente do Comune, Antônio Jorge da Cunha, não foi atendida.
— É de praxe nos hospitais aqui de Caxias, que católicos e evangélicos possam fazer visitas e orações para os enfermos. Por isso, solicitamos ao Hospital Geral e ao Hospital Pompéia que permitam a entrada da comunidade negra, com a mesma finalidade, por meio das religiões de matriz africana, que atualmente não tem acesso. Ainda não tivemos resposta sobre essa situação — revela o piauiense Antonio Cunha, 57, que é metalúrgico com graduação em História.
Cunha mora em Caxias desde 1986 e lembra-se muito bem da morte do mestre de obras José Maria Martins, 42 anos, morto na madrugada de 11 de novembro de 2000. Segundo o texto da reportagem do jornal Pioneiro (em 25 de outubro de 2010), por conta do julgamento de dois brigadianos e um ex-PM, acusados de matar José Maria, os jornalistas Daniel Corrêa e Guilherme Pulita, assim relataram:
"Zé Maria, como era conhecido o mestre de obras, preparava-se para entrar em sua Quantum ano 1997, estacionada no Centro, quando um motorista imaginou que ele estivesse tentando furtar o veículo. O homem informou a suspeita a um PM. A informação chegou ao conhecimento da central da Brigada Militar (BM), e Zé Maria, um dos líderes da comunidade do bairro Fátima, começou a ser perseguido pelas ruas. (…) Os policiais disseram que trocaram tiros com Zé Maria. O mestre de obras morreu com dois tiros — na axila esquerda e nas costas —, quando estava a poucos metros de casa".
— Lembro muito bem do Caso Zé Maria. Aquele fato foi revoltante. Eu estive presente no julgamento dos policiais, mas só um foi considerado culpado. É por isso que precisamos continuar lutando para mudar essa realidade. A sociedade, de uma forma geral, não só negro, precisa se indignar com essa violência e perseguição que ocorre com um semelhante seu — defende.
A morte de George Floyd, nos Estados Unidos, assim como a do menino João Pedro, de 14 anos, morto em casa, enquanto brincava com seus primos e amigos, em São Gonçalo, motivaram que o Comune emitisse a seguinte nota de repúdio:
"O Conselho Municipal da Comunidade Negra, através de seus representantes, manifesta publicamente, repúdio à morte do nosso irmão norte-americano George Floyd, do menino carioca João Pedro e todos os jovens das periferias do nosso país, que sejam fruto do abuso por parte do Estado e de quaisquer formas de discriminação e preconceito racial, sexista, homofóbico ou de intolerância religiosa".
— Nosso irmão, George Floyd morreu dizendo que não conseguia respirar. Essa frase se tornou o símbolo da resistência do povo negro no Brasil e no mundo — protesta Cunha.
CONSELHO MUNICIPAL DA COMUNIDADE NEGRA
Site: Comune
E-mail: comune@caxias.rs.gov.br
Endereço: Casa da Cidadania (Rua Visconde de Pelotas, 449 - Centro, Caxias do Sul)
Fone: 3215.4240