O asfalto tem fissuras. Expostas mesmo antes desse tempo de pandemia. Não se trata aqui do realismo obtuso, ou da reclamatória das condições da pavimentação da cidade. Para além do pragmatismo que a vida insta, urgente, a poesia existe para nos conduzir daqui para a eternidade. Impérios, ideologias, correntes filosóficas, potências econômicas e exércitos sucumbiram digladiando-se entre si, em meio às guerras e pragas de todas as sortes. Pode uma nação ser dizimada, mas restará a sua herança cultural. E, no centro dessa cena, a poesia, impávida, resistente, apesar de hoje relegada às prateleiras escondidas das livrarias e das bibliotecas.
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Dinarte Albuquerque Filho não é o último poeta dessa era, nem será o último a cravar em livros a importância da poesia. Cruzaltense, mora em Caxias do Sul, na cidade que ele mesmo afirmar que o adotou. Quisera o destino que o seu mais recente livro, Fissura no asfalto (Liddo Editora), ficasse pronto durante a pandemia do coronavírus. De um lado, o prazer de abrir as caixas e sentir o perfume do livro novo, de outro, a frustração com o cancelamento da sessão de lançamento.
Se a covid-19 não tivesse nos alcançado, no dia 30 de abril teria ocorrido não apenas uma tarde de autógrafos de Fissura no asfalto, mas também, show, projeções em vídeo, conversas e encontros, que se arrastariam noite adentro como reza a boa boemia (se é que existe a má).
Fissura no asfalto, curiosamente, é um livro do agora, com os pés no passado. Era pra ter sido lançado antes do livro de poesia Leituras na madrugada (2014), e pouco tempo depois da investigação acerca da obra de Paulo Leminski: O samurai malandro (2009).
— Essa fissura demarca uma linha, que vai de um período para um outro tempo — diz Dinarte, 56 anos, como se pensasse alto, como se pudesse explicar porque o livro não se impôs sobre os demais.
A poesia tem esse encanto, esse alento, essa inquietude de atravessar tempo e espaço e cravar no peito a desconstrução de paradigmas. É como escreve Dinarte:
janela pressupõe paisagem
paisagem sugere espaço
espaço lembra liberdade
liberdade resgata ideias
ideias põem em movimento
o inconformismo
Dinarte é um cara de fala mansa, além de poeta, é jornalista e mestre em literatura. Em sua casa, há estantes, organizadas, com livros de prosa e poesia, histórias em quadrinhos, revistas e jornais. Seja como jornalista ou poeta, sentiu na pele as ações e reações de uma cidade nem sempre afável à cultura. Fissura no asfalto, de certo modo, resgata aquela aura que ele semeou sempre, desde os tempos de Romã (1991, com Fátima Jeanette Martinato) e Um olhar sobre a cidade - e outros olhares (1995), seus primeiros livros. Dinarte sempre quis trazer pra perto seus afetos, de todas as linguagens artísticas.
Nessa trilha pelas fissuras no asfalto, Dinarte teve a parceira dos amigos de longa data, o fotógrafo Mário André Coelho, o designer Ernani Carraro e, os produtores culturais, Luciano Balen e Maurício Ramos.
— O projeto desse livro de 2012 era diferente, tinha outra apresentação. Aí, conversei com o Mário André, que se propôs a fazer uma pesquisa visual e apresentou essas fotos que estão no livro, como sendo detalhes da cidade. A partir disso, pensou-se em não apenas reproduzir as imagens, mas interferir nelas. E aí, entrou a habilidade do Ernani, em fazer essa transformação nas fissuras — explica Dinarte.
A cidade, cenário da obra de Dinarte, anda hostil. Porque há, aqui e ali, um vírus a circular livre, apesar das estatísticas parecerem favoráveis e do comércio instigar às compras. O poeta que sempre divagou pela cidade, à procura da poesia que brota do asfalto, segue em casa, recluso. Na próxima semana, os livros deverão estar à venda nas livrarias. Por enquanto, podem ser comprados através de contato por e-mail (dhynarteb@gmail.com). Pra quem ainda se pergunta: "por que poesia numa hora dessas?". O poeta responde, com outra pergunta:
há quem olhe torto
há quem olhe terno
quem olha
enxerga o que vê
mas
será
q sente
o q?
FISSURA NO ASFALTO
de Dinarte Albuquerque Filho
Liddo Editora
R$ 30
À venda através do e-mail dhynarteb@gmail.com. Na próxima semana, estará à disposição nas livrarias de Caxias do Sul.
Obra financiada pela Lei de Incentivo à Cultura, da prefeitura de Caxias do Sul, com apoio da Fundação Marcopolo, SanMartin e Roni Chaves