Caso fosse nascido na Serra Gaúcha, talvez o escritor colombiano Gabriel García Márquez tivesse encontrado em Vila Flores, e não na Aracataca de sua infância, a inspiração para criar o mítico povoado de Macondo, onde se desenrola a obra-prima Cem Anos de Solidão. É o que se conclui enquanto a imaginação viaja pela história da família Fiori, cujo patriarca, Giovacchino, e sua esposa Antonina, imigrantes italianos que se conheceram em Bento Gonçalves, abriram no então distrito de Pinheiro Seco, pertencente a Veranópolis, a bodega Casa Fiori. Cento e sete anos depois, o negócio persiste sob o charmoso nome Villa do Pão, hoje administrado pela quarta geração da família.
Quem conta a saga dos Fiori é Salete, 52, bisneta de Antonina e Giovacchino. Havia naquele começo de século uma acirrada rivalidade entre os times de bocha de Pinheiro Seco e de Veranópolis. Corria o ano de 1926 quando, após uma equilibrada disputa entre as duas equipes, a jogada derradeira de seu bisavô decidiu o campeonato a favor de Pinheiro Seco. Derradeira também porque, ao ser jogado para o alto pelos colegas de time, sob o som de sinos e fogos de artifício, Giovacchino, aos 68 anos, enfartou e morreu, literalmente, nos braços do seu povo. Herói local, o imigrante não chegou a ver renomearem com o seu sobrenome o distrito que, em 1938, seria reconhecido como município de Vila Flores (Villa dei Fiori, em italiano), hoje com três mil habitantes. As façanhas da família no entanto, não terminam por aí.
Após perder o marido, Antonina passou por dificuldades para educar e sustentar os 12 filhos com a renda da bodega. Quis o destino, como noutro toque de realismo mágico, que um vendaval derrubasse os pinheiros de uma propriedade que Giovacchino havia adquirido pouco antes de morrer. Diante das araucárias caídas, a matriarca decidida, conhecida por sempre carregar consigo uma pistola que trouxe escondida da Itália, teve a ideia de pedir um empréstimo e abrir uma serraria.
— Foi o que fez a vida econômica da família deslanchar. As madeiras cortadas eram transportadas de carroça até o Rio das Antas, pegavam a balsa para depois chegar a municípios como Montenegro e Porto Alegre, onde eram trocadas por arroz, açúcar, louças e tecidos para serem comercializados na bodega, que então virou um armazém — conta Salete, que divide suas atenções entre a Villa do Pão e o ofício de professora de Geografia.
Conforme o negócio passou a prosperar, Antonina adquiriu o hábito de enviar peças de tecido para os parentes que viviam na região de Padova, na Itália. Certa feita, recebeu de um familiar uma carta pedindo para que parasse com os envios, pois os italianos estavam tão maltrapilhos após a II Guerra Mundial que já estava ficando chato eles andarem tão bem vestidos com os trajes finos que recebiam do Brasil.
Desde seus primórdios a Casa Fiori foi referência para os moradores de Vila Flores. Ainda está preservado o cofre da família, que também servia como uma espécie de banco para guardar o dinheiro e pertences de valor dos moradores da região. Como muitas compras na bodega eram, na verdade, troca de mercadorias como trigo, açúcar e milho, a bodega também fazia a integração entre a sede e os produtores do interior. Embora parecessem trocas simples, a família também guarda o sistema de correspondência de letras por números, um tipo de código que servia para Antonina Fiori tabular os preços das mercadorias de maneira que só ela soubesse decifrar. Nada, contudo, parece simbolizar melhor os Fiori e sua relação com a comunidade, tanto hoje quanto há cem anos, do que o pão.
— Como a família era enorme, já que eram 12 filhos e mais suas esposas ou maridos, os pães da bisa chegavam a pesar dois quilos. Chamavam a atenção dos viajantes, ou tropeiros, que se tornaram fregueses. Foi o alimento que ajudou as mulheres da família a ter o seu sustento. Nos anos 1970, quando meu pai resolveu fechar a loja por um tempo, minha mãe ia até Veranópolis recolher encomendas e depois voltava para vender seus pães, a assim ter seu próprio dinheiro — conta Salete.
Igualmente tradicional, a receita centenária do pão é mantida: água, farinha, açúcar, sal, banha, fermento e suco de laranja, este último "para que a acidez deixe a massa mais furadinha", segundo a bisneta. E nada de misturas pré-prontas, para não perder o toque caseiro. E, embora já tenham sido feitos sob encomenda pães de 15 e até 21 quilos, o tamanho médio diminuiu: hoje, as unidades variam entre 300g e um quilo, somando uma venda média de 160 pães por dia.
Além dos pães, carro-chefe do negócio, a Villa do Pão também foca na produção de biscoitos artesanais, que homenageiam as mulheres da família. Os "da bisa", são bolachas de maizena e de milho. "Da vó" os dedinhos de mel, as broas e os merengues. E, "da mãe" os grostolis, sendo os mais finos feitos com cachaça, os mais grossos com nata. Visitar a Villa do Pão é deliciar os sentidos e aguçar a imaginação, como as sensações que nos provocam as melhores obras dos maiores escritores.
A Casa Fiori virou Villa do Pão
Entre 2006 e 2008, a Casa Fiori esteve fechada. Sob o comando de Salete Fiori e sua família, a reabertura marcou uma repaginada na história do empreendimento, no sentido de equilibrar tradição familiar e modernidade no balcão, além de atrelar gastronomia e turismo. O negócio passou a integrar o roteiro Termas & Longevidade, que une destinos gastronômicos e religiosos da região, e tem como principal chamariz as águas termais da Pousadas dos Capuchinos, também em Vila Flores.
Salete, que reside no sobrado com o marido e com os pais, Iracema e Liseo (neto de Giovacchino e Antonina), comenta que visitantes de outras cidades representam cerca de 80% do público:
— Muitas pessoas mantém uma ligação afetiva com a nossa família e com os produtos. São clientes que vêm de Bento, Veranópolis, Carazinho, Passo Fundo. Também recebemos muitos turistas que vêm para as águas termais e aproveitam para fazer seu lanche conosco.
Salete também conta que a reinauguração deu uma sobrevida ao pai. Nos dois anos em que a Casa esteve fechada, diz, a saúde do idoso tornou-se frágil e ele perdeu disposição. Vê-lo voltar à vida ativa e interessada após a reinauguração foi uma das maiores conquistas para a família. Com a memória bem preservada, mas a fala prejudicada após ter sofrido um AVC recentemente, algumas das histórias que o idoso conta sobre a juventude, especialmente no tempo em que serviu ao exército, foram transformadas em pequenas narrativas e podem ser conferidas, impressas, nas paredes da Villa do Pão:
— Do que adianta a gente viver se não for pra levar adiante aquilo que os que vieram antes de nós construíram? Respeito é a palavra que gosto de usar. Respeito ao trabalho que eles tiveram para erguer e manter essa casa de pé. O pão, os bolos e os biscoitos, assim como esse gosto por receber as pessoas, estão no sangue da nossa família.
A padaria também mantém viva a tradição do café da tarde das "nonnas", servidos aos finais de semana. Realizado nos sábados de outono e inverno (o primeiro deste ano será no dia 21 de março), o "Café da Vó" leva a uma grande mesa instalada em um dos salões da padaria o típico café das colônias italianas, com marmelada, chimia, fortaia, salame, polenta brustolada, pães e biscoitos. O consumo livre custa R$ 35 por pessoa.